Enfim o leitor brasileiro começa a encontrar nas livrarias alguns títulos da bibliografia de Miguel Torga. Há cerca de dois meses foram publicados Contos da montanha e Novos contos da montanha, que reúnem as mais instigantes narrativas daquele que é talvez o maior contista português de todos os tempos. Estes dois livros são para ser lidos e relidos por toda a vida e, em cada nova leitura, revelam caminhos ainda desconhecidos. São obras essenciais sobre a criatura humana, sua desconcertante simplicidade, seus enredados mistérios.
Agora a Nova Fronteira, detentora dos direitos da obra do autor no Brasil, anuncia a publicação de A criação do mundo e entrega ao público dois outros volumes: Bichos e Portugal. Este último (1) reúne impressões de algumas das principais regiões geográficas do país (de Trás-os-Montes ao Algarve), escritas por um cronista sempre apaixonado pela sua terra. Para os portugueses que vivem no Brasil poderá ser uma leitura agradável, mas para aqueles que, como eu, desconhecem a gente e os costumes dos lugares celebrados o livro não tem maior atrativo.
Em compensação, Bichos é um lançamento capaz de encantar qualquer leitor sensível. Publicado pela primeira vez em 1940, reúne os primeiros contos do autor. É como se ele quisesse fazer um inventário de tipos humanos compreendidos a partir dos seus impulsos ancestrais, da sua condição animal. O pequeno livro que chega à vigésima edição em português (sem contar com as traduções para o romeno, o francês, o espanhol, o alemão, o japonês e o servo-croata) traz quatorze histórias curtas de bichos e gente. Bichos que remetem ao universo simbólico dos homens; pessoas que confundem seu viver com o destino animal.
São contos simples, singelos, mas escritos por um artista admirável, que realça a constante novidade da língua sem fazer as acrobacias que transformam a fala num espantalho de artifícios. Miguel Torga escreve como se estivesse passando a limpo, ou surpreendendo na sua essência mais profunda, a fala da gente simples da sua aldeia.
Por isso ele não procura marcar as diferenças superficiais do dizer do povo, como quem grafa o pitoresco; ele busca o sentido profundo de uma vivência rica de humanidade, reunido por gerações que se acumulam neste pequeno e bem guardado cofre de segredos que é a língua particular de cada região e, na verdade, comum aos usuários do mesmo idioma, que saibam espreitar suas sendas.
Como a ambição deste escritor sempre foi ser um porta-voz da sua gente, ele nos traz as palavras ásperas e plenas, como um recém-nascido, da fala da aldeia. Mas descobre (ou inventa) sentidos múltiplos que a partir do seu texto de escritor ficam incorporados ao idioma de todos nós como frutos maduros e de sabor desconhecido, trazidos das montanhas.
Assim, o leitor desatento, ou apressado, pode ver na linguagem de Miguel Torga apenas o registro de um velho e saudoso menino de Trás-os-Montes. Mas o leitor paciente e disposto a surpreender o encanto que se esconde por trás de cada palavra desconhecida e de cada frase estranha às ruas da cidade grande, compreende o engenho do invento: a rústica e bem elaborada narrativa de Miguel Torga.
Para quem não aprecia o oxímoro, a dialética do ser vislumbrada em dizer, tal afirmativa soará tão estranha quanto o contraditório mundo dos homens que o escritor traduz em arte e palavra. Para os outros, de olhos e ouvidos curiosos como um menino, estas historinhas de bichos e gente ajudam a espreitar o sentido da natureza e do mundo dos homens. Os dois contos que fecham o volume nos alertam para o sentido simbólico do conjunto.
“Jesus” é o nome do menino que descobre um ninho no galho mais alto da árvore. O inesperado personagem inclui a cosmologia cristã em meio à “natureza cósmica” do pensamento torguiano. Vicente, o corvo da narrativa final, na sua desobediência ao Criador, fugindo da Arca em que o Senhor guardou os eleitos do dilúvio, faz do seu insensato gesto um grito de liberdade.
Quando todos os bichos experimentavam o doce recolhimento dos escolhidos para a vida, Vicente, o corvo, fugiu da arca para gozar a liberdade das águas enfurecidas e desafiar a morte.
Escritor de um Portugal tantos anos submetido ao silêncio e ao arbítrio de uma ditadura, Torga celebra o risco da desobediência como uma apologia da liberdade. É o que nos alerta a prefaciadora do livro, a velha mestra Cleonice Berardinelli, que na sua breve lição analisa as diversas situações narrativas, guiando o leitor em meio as urzes e as torgas dos caminhos da escrita. Levados pelas mãos experientes desta guia, o leitor brasileiro poderá admirar e compreender a paisagem do mundo criado por Miguel Torga.
Agora a Nova Fronteira, detentora dos direitos da obra do autor no Brasil, anuncia a publicação de A criação do mundo e entrega ao público dois outros volumes: Bichos e Portugal. Este último (1) reúne impressões de algumas das principais regiões geográficas do país (de Trás-os-Montes ao Algarve), escritas por um cronista sempre apaixonado pela sua terra. Para os portugueses que vivem no Brasil poderá ser uma leitura agradável, mas para aqueles que, como eu, desconhecem a gente e os costumes dos lugares celebrados o livro não tem maior atrativo.
Em compensação, Bichos é um lançamento capaz de encantar qualquer leitor sensível. Publicado pela primeira vez em 1940, reúne os primeiros contos do autor. É como se ele quisesse fazer um inventário de tipos humanos compreendidos a partir dos seus impulsos ancestrais, da sua condição animal. O pequeno livro que chega à vigésima edição em português (sem contar com as traduções para o romeno, o francês, o espanhol, o alemão, o japonês e o servo-croata) traz quatorze histórias curtas de bichos e gente. Bichos que remetem ao universo simbólico dos homens; pessoas que confundem seu viver com o destino animal.
São contos simples, singelos, mas escritos por um artista admirável, que realça a constante novidade da língua sem fazer as acrobacias que transformam a fala num espantalho de artifícios. Miguel Torga escreve como se estivesse passando a limpo, ou surpreendendo na sua essência mais profunda, a fala da gente simples da sua aldeia.
Por isso ele não procura marcar as diferenças superficiais do dizer do povo, como quem grafa o pitoresco; ele busca o sentido profundo de uma vivência rica de humanidade, reunido por gerações que se acumulam neste pequeno e bem guardado cofre de segredos que é a língua particular de cada região e, na verdade, comum aos usuários do mesmo idioma, que saibam espreitar suas sendas.
Como a ambição deste escritor sempre foi ser um porta-voz da sua gente, ele nos traz as palavras ásperas e plenas, como um recém-nascido, da fala da aldeia. Mas descobre (ou inventa) sentidos múltiplos que a partir do seu texto de escritor ficam incorporados ao idioma de todos nós como frutos maduros e de sabor desconhecido, trazidos das montanhas.
Assim, o leitor desatento, ou apressado, pode ver na linguagem de Miguel Torga apenas o registro de um velho e saudoso menino de Trás-os-Montes. Mas o leitor paciente e disposto a surpreender o encanto que se esconde por trás de cada palavra desconhecida e de cada frase estranha às ruas da cidade grande, compreende o engenho do invento: a rústica e bem elaborada narrativa de Miguel Torga.
Para quem não aprecia o oxímoro, a dialética do ser vislumbrada em dizer, tal afirmativa soará tão estranha quanto o contraditório mundo dos homens que o escritor traduz em arte e palavra. Para os outros, de olhos e ouvidos curiosos como um menino, estas historinhas de bichos e gente ajudam a espreitar o sentido da natureza e do mundo dos homens. Os dois contos que fecham o volume nos alertam para o sentido simbólico do conjunto.
“Jesus” é o nome do menino que descobre um ninho no galho mais alto da árvore. O inesperado personagem inclui a cosmologia cristã em meio à “natureza cósmica” do pensamento torguiano. Vicente, o corvo da narrativa final, na sua desobediência ao Criador, fugindo da Arca em que o Senhor guardou os eleitos do dilúvio, faz do seu insensato gesto um grito de liberdade.
Quando todos os bichos experimentavam o doce recolhimento dos escolhidos para a vida, Vicente, o corvo, fugiu da arca para gozar a liberdade das águas enfurecidas e desafiar a morte.
Escritor de um Portugal tantos anos submetido ao silêncio e ao arbítrio de uma ditadura, Torga celebra o risco da desobediência como uma apologia da liberdade. É o que nos alerta a prefaciadora do livro, a velha mestra Cleonice Berardinelli, que na sua breve lição analisa as diversas situações narrativas, guiando o leitor em meio as urzes e as torgas dos caminhos da escrita. Levados pelas mãos experientes desta guia, o leitor brasileiro poderá admirar e compreender a paisagem do mundo criado por Miguel Torga.
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1. TORGA, Miguel: Bichos. Contos; apresentação de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, 136 p.