A história deste livro começou no Brasil, em 1941, quando Miguel Torga publicou a primeira edição de Contos da Montanha. Três anos depois, ele reuniu outras narrativas situadas no mesmo cenário, sob o título de Novos contos da montanha, que, segundo o autor, foi “mais feliz do que o seu irmão gêmeo Contos da montanha, desterrado no Brasil.” Agora são os dois e mais alguns outros (como o Diário, Bichos e Portugal) que migram para o nosso país e encontram acolhida numa casa ampla e confortável — a Nova Fronteira. Aqui, milhares de leitores aguardam os velhos conhecidos que, por fim, são reencontrados e chegam para ficar.
Numa época em que muitos portugueses foram expulsos das suas províncias pela fome que ameaçava a uns e batia à porta de outros, o Brasil acolheu levas de emigrantes. Alguns viveram no campo as mesmas vicissitudes das quais fugiram; outros encontraram na cidade grande oportunidade para construção de uma nova vida. O menino Adolfo Rocha, que mais tarde se tornaria o escritor Miguel Torga, esteve entre os primeiros: veio para o Brasil aos treze anos, trabalhando numa fazenda em Minas Gerais como apanhador de café, destocador de pastos, vaqueiro e caçador de cobras. Diante das dificuldades enfrentadas como emigrante, retornou a Portugal cinco anos depois, em 1925.
A força de vontade e a capacidade de trabalho deste homem extraordinário fizeram com que em 1928, o antigo trabalhador braçal publicasse seu primeiro livro, Ansiedade. Daí por diante seguiu-se uma obra vasta e de alta qualidade que chega a mais de cinqüenta títulos. De trabalhador rural, em Minas Gerais, a médico conceituado, em Coimbra, a ascensão permitiu ao escritor se dedicar a construir um conjunto de obra que hoje representa um dos maiores patrimônios literários de língua portuguesa.
Por circunstância ou motivo ainda pouco conhecido, os Contos da Montanha foram originalmente publicados no Brasil, onde alcançaram três edições, a segunda em 1955 e a terceira em 1962. Somente em 1969 este livro passou a integrar a coleção editada pelo autor, depois de ser revisto e aumentado.
Agora, ganhando os limites de uma nova fronteira, os Contos da montanha, reunidos aos Novos contos..., chegam novamente às mãos do leitor brasileiro revistos e reescritos diversas vezes pelo autor. Retornam ao Brasil como uma obra nova e atual, mas sem perder as marcas de uma velha aldeia das montanhas portuguesas da primeira metade do século.
É curioso observar nestes contos exemplares o equilíbrio conseguido entre a dimensão individual, psicológica, de cada personagem e a dimensão social. Nos anos quarenta, a literatura portuguesa procurava se libertar da excessiva valorização do plano individual e da subjetividade, imposta pela Geração de Presença, e se aproximava do engajamento e do realismo socialista já assumidos pelo Romance Brasileiro de 30. Ferreira de Castro, um dos precursores dessa tendência neo-realista, levou para a imprensa portuguesa o debate sobre os escritores brasileiros do Nordeste, como Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos.
Foi com grande repercussão que o romance português abandonou as análises intimistas e adotou uma perspectiva de denúncia social, onde o aspecto humano das populações excluídas passou a ser o eixo central da obra. Escritores como Alves Redol, por exemplo, chegaram a copiar os clichês de um Jorge Amado então voltado para as exigências do Partido Comunista.
Neste contexto de descobertas e caricaturas populistas, a obra de Miguel Torga, por não se submeter às exigências do Neo-Realismo, conseguiu atingir o equilíbrio que assegura a permanência de qualquer texto. A preocupação do autor com o destino das figuras de carne e osso que serviram de modelo aos seus personagens é patente tanto nestes Contos da montanha, lançados no Brasil em 1941, quanto nos Novos contos da montanha, publicados em Portugal, em 1944, com novas histórias e novos protagonistas de uma mesma aldeia marcada pelo sofrimento e ameaçada pela miséria.
Mas a ausência de amarras prendendo o texto a um figurino ou a uma moda literária, embora afastasse o autor das discussões e da convivência com os grupos da época, deu uma dimensão menos restrita ao trabalho, assegurando o interesse do leitor de qualquer tempo e lugar.
Vista com olhos de hoje, sem as paixões suscitadas pelos dilemas do realismo socialista, a obra de Torga é mais eficiente (mesmo enquanto documento de denúncia) do que os romances panfletários dos neo-realistas de deliberada atitude política. Enquanto o texto torguiano ampliou a dimensão dos problemas pelas lentes da arte, as obras comprometidas com as exigências do movimento Neo-Realista deram destaque às estratégias de denúncia política, perdendo-se nos estreitos limites da ética partidária.
Mas não se pense que Miguel Torga, mesmo distante dos grupos literários estava indiferente aos destinos do seu povo e da sua pátria. Em 1945, na segunda edição dos Novos contos..., ele termina o prefácio de modo direto: “Na tua idéia, o que escrevo, como por exemplo estas histórias, é para te regalar e, se possível for, comover. Mas quero que saibas que ousei partir desse regalo e dessa comoção para te responsabilizar na salvação da casa que, por arder, te deslumbra os sentidos.”
Mais tarde, em 1968, ele escrevia no prefácio da quarta edição dos Contos da montanha: “Quatro décadas de opressão desfiguraram completamente a paisagem do país. A humana e a outra. Velhos desamparados, adultos desiludidos, jovens revoltados — num palco de desolação”.
Destaque-se, portanto, que além de ser o autor de retratos densos e psicologicamente bem focados de homens e mulheres, Miguel Torga não descarnou seus personagens do contexto social. Ele enfrentou o problema, então posto em especial relevo, mas não se limitou ao figurino da moda. Da mesma forma que, anteriormente, não amarrou seu invento à corrente de Presença, também não reduziu o alcance da sua obra ao limite neo-realista. As boas intenções e os sentimentos de solidariedade falavam mais alto no Neo-Realismo do que o poder de fabulação, o que era uma amarra a ser quebrada pelos escritores mais ousados e criativos. Ultrapassar tais limites representava colocar o texto literário para além de uma tendência, abrindo para ele as portas da permanência. Assim fizeram os clássicos da modernidade: ultrapassaram a sua circunstância e se inscreveram para além das terras do sem-fim.
Mais alto do que o sentimento do autor é o poder da narrativa de Miguel Torga de criar um universo ficcional que, mesmo sem exigir do leitor não politizado o engajamento intelectual, obriga a este leitor a se comprometer com o destino dos personagens das suas histórias. Torga não faz pregação humanitária. Faz tão somente histórias boas de se ler. Mas as tintas destas histórias pintam uma realidade humana com cores tão vivas que é impossível a qualquer outro ser humano não sentir uma ponta de simpatia e solidariedade pelos habitantes da montanha do invento.
Numa época em que muitos portugueses foram expulsos das suas províncias pela fome que ameaçava a uns e batia à porta de outros, o Brasil acolheu levas de emigrantes. Alguns viveram no campo as mesmas vicissitudes das quais fugiram; outros encontraram na cidade grande oportunidade para construção de uma nova vida. O menino Adolfo Rocha, que mais tarde se tornaria o escritor Miguel Torga, esteve entre os primeiros: veio para o Brasil aos treze anos, trabalhando numa fazenda em Minas Gerais como apanhador de café, destocador de pastos, vaqueiro e caçador de cobras. Diante das dificuldades enfrentadas como emigrante, retornou a Portugal cinco anos depois, em 1925.
A força de vontade e a capacidade de trabalho deste homem extraordinário fizeram com que em 1928, o antigo trabalhador braçal publicasse seu primeiro livro, Ansiedade. Daí por diante seguiu-se uma obra vasta e de alta qualidade que chega a mais de cinqüenta títulos. De trabalhador rural, em Minas Gerais, a médico conceituado, em Coimbra, a ascensão permitiu ao escritor se dedicar a construir um conjunto de obra que hoje representa um dos maiores patrimônios literários de língua portuguesa.
Por circunstância ou motivo ainda pouco conhecido, os Contos da Montanha foram originalmente publicados no Brasil, onde alcançaram três edições, a segunda em 1955 e a terceira em 1962. Somente em 1969 este livro passou a integrar a coleção editada pelo autor, depois de ser revisto e aumentado.
Agora, ganhando os limites de uma nova fronteira, os Contos da montanha, reunidos aos Novos contos..., chegam novamente às mãos do leitor brasileiro revistos e reescritos diversas vezes pelo autor. Retornam ao Brasil como uma obra nova e atual, mas sem perder as marcas de uma velha aldeia das montanhas portuguesas da primeira metade do século.
É curioso observar nestes contos exemplares o equilíbrio conseguido entre a dimensão individual, psicológica, de cada personagem e a dimensão social. Nos anos quarenta, a literatura portuguesa procurava se libertar da excessiva valorização do plano individual e da subjetividade, imposta pela Geração de Presença, e se aproximava do engajamento e do realismo socialista já assumidos pelo Romance Brasileiro de 30. Ferreira de Castro, um dos precursores dessa tendência neo-realista, levou para a imprensa portuguesa o debate sobre os escritores brasileiros do Nordeste, como Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos.
Foi com grande repercussão que o romance português abandonou as análises intimistas e adotou uma perspectiva de denúncia social, onde o aspecto humano das populações excluídas passou a ser o eixo central da obra. Escritores como Alves Redol, por exemplo, chegaram a copiar os clichês de um Jorge Amado então voltado para as exigências do Partido Comunista.
Neste contexto de descobertas e caricaturas populistas, a obra de Miguel Torga, por não se submeter às exigências do Neo-Realismo, conseguiu atingir o equilíbrio que assegura a permanência de qualquer texto. A preocupação do autor com o destino das figuras de carne e osso que serviram de modelo aos seus personagens é patente tanto nestes Contos da montanha, lançados no Brasil em 1941, quanto nos Novos contos da montanha, publicados em Portugal, em 1944, com novas histórias e novos protagonistas de uma mesma aldeia marcada pelo sofrimento e ameaçada pela miséria.
Mas a ausência de amarras prendendo o texto a um figurino ou a uma moda literária, embora afastasse o autor das discussões e da convivência com os grupos da época, deu uma dimensão menos restrita ao trabalho, assegurando o interesse do leitor de qualquer tempo e lugar.
Vista com olhos de hoje, sem as paixões suscitadas pelos dilemas do realismo socialista, a obra de Torga é mais eficiente (mesmo enquanto documento de denúncia) do que os romances panfletários dos neo-realistas de deliberada atitude política. Enquanto o texto torguiano ampliou a dimensão dos problemas pelas lentes da arte, as obras comprometidas com as exigências do movimento Neo-Realista deram destaque às estratégias de denúncia política, perdendo-se nos estreitos limites da ética partidária.
Mas não se pense que Miguel Torga, mesmo distante dos grupos literários estava indiferente aos destinos do seu povo e da sua pátria. Em 1945, na segunda edição dos Novos contos..., ele termina o prefácio de modo direto: “Na tua idéia, o que escrevo, como por exemplo estas histórias, é para te regalar e, se possível for, comover. Mas quero que saibas que ousei partir desse regalo e dessa comoção para te responsabilizar na salvação da casa que, por arder, te deslumbra os sentidos.”
Mais tarde, em 1968, ele escrevia no prefácio da quarta edição dos Contos da montanha: “Quatro décadas de opressão desfiguraram completamente a paisagem do país. A humana e a outra. Velhos desamparados, adultos desiludidos, jovens revoltados — num palco de desolação”.
Destaque-se, portanto, que além de ser o autor de retratos densos e psicologicamente bem focados de homens e mulheres, Miguel Torga não descarnou seus personagens do contexto social. Ele enfrentou o problema, então posto em especial relevo, mas não se limitou ao figurino da moda. Da mesma forma que, anteriormente, não amarrou seu invento à corrente de Presença, também não reduziu o alcance da sua obra ao limite neo-realista. As boas intenções e os sentimentos de solidariedade falavam mais alto no Neo-Realismo do que o poder de fabulação, o que era uma amarra a ser quebrada pelos escritores mais ousados e criativos. Ultrapassar tais limites representava colocar o texto literário para além de uma tendência, abrindo para ele as portas da permanência. Assim fizeram os clássicos da modernidade: ultrapassaram a sua circunstância e se inscreveram para além das terras do sem-fim.
Mais alto do que o sentimento do autor é o poder da narrativa de Miguel Torga de criar um universo ficcional que, mesmo sem exigir do leitor não politizado o engajamento intelectual, obriga a este leitor a se comprometer com o destino dos personagens das suas histórias. Torga não faz pregação humanitária. Faz tão somente histórias boas de se ler. Mas as tintas destas histórias pintam uma realidade humana com cores tão vivas que é impossível a qualquer outro ser humano não sentir uma ponta de simpatia e solidariedade pelos habitantes da montanha do invento.
Apesar da obra numerosa e variada, além da densidade surpreendente do Diário, é no gênero conto que Miguel Torga dá o melhor de si. Ele é, sem dúvida, o mais apaixonante e tecnicamente bem formado contista português de todos os tempos.
Se o conto surgiu em Portugal na Idade Média, quando os escrivães dos livros de linhagem procuravam usar a imaginação para conferir maior interesse às narrativas sobre a vida dos príncipes e senhores de terras e gentes, este gênero ganhou maturidade no século XIX.
Os românticos e realistas impuseram o conto junto ao gosto do público. Camilo, Herculano, Rabelo da Silva e Eça de Queirós foram alguns dos expoentes do gênero que, para além do seu tempo e do seu lugar, permaneceram como autores de narrativas exemplares. Mas enquanto Camilo e Eça tornaram-se mestres da novela e do romance, Torga fez-se mestre do conto, indo além das conquistas trazidas pelo século precedente.
Bichos, de 1940, é o seu primeiro livro de contos, que já está chegando à vigésima edição, todas revistas, modificadas e acrescidas. Até o último momento da sua vida de escritor, Adolfo Rocha recriava os livros de Miguel Torga, não importando se fosse a segunda ou a trigésima edição, sempre em busca do mistério surpreendente da criação poética. Daí a distância entre uma edição dos anos cinqüenta ou sessenta e outra mais recente de um mesmo livro. Estamos diante de uma outra e mesma obra que apresenta instigantes desafios à critica genética.
A partir desta pequena arca de Noé, cheia de bichos e gente, Miguel Torga criou um novo mundo de contos que, aos nossos olhos de leitores fascinados, passa a limpo o discurso do dia a dia, sublinhando suas injustiças e corrigindo o viés do nosso olhar. Com este mundo inventado aprendemos a ver melhor o mundo que criaram para nós.
É na temática alimentada pelo rico universo humano de Trás-os-Montes que Torga alcança maior densidade. Curiosamente, sua ficção é construída a partir de pedaços vivos da realidade agreste da sua região natal. Os fatos mais insólitos e aparentemente criados pela fantasia são, na verdade, reconstituições de experiências vividas.
E aqui deixo o tom impessoal da escrita, para repetir um depoimento pouco útil, talvez, mas pitoresco. (Cf. o artigo intitulado “O silêncio do Orfeu Rebelde”, escrito por ocasião da morte de Adolfo Rocha, em cujo corpo habitava o escritor Miguel Torga.)
Tive a feliz oportunidade de constatar que alguns dos episódios que compõem seus contos foram vividos ao lado de amigos, conhecidos ou companheiros de caça, uma das paixões do homem Adolfo Rocha. Através de um inesquecível emigrante, o comendador Antonio Carvalho de Araújo, figura maior da comunidade portuguesa na Bahia, conheci o filho da dona do restaurante «A Portuguesa», que ainda hoje funciona num velho casarão da Avenida Sete de Setembro, em Salvador. Este português do Brasil costumava ir todos os anos a Portugal para caçar com um velho médico que conhecera quando ainda era menino: o médico se chamava Adolfo Rocha.
Alguns episódios lembrados pelo companheiro de caça de Miguel Torga estão transfigurados ou recriados aqui e ali, mostrando como a observação atenta do caçador e a vivência do antigo trabalhador rural ganham dimensão artística na escrita mágica dos seus contos, simultaneamente reais e fabulosos.
Daí a angústia de Miguel Torga ao se saber porta-voz de uma gente que nem o pode ler. Contrariamente à ensaiada postura do realismo socialista, onde a solidariedade obedece aos rituais partidários, ele retira da alma do menino de Trás-os-Montes a motivação íntima de um drama coletivo, dando a uma obra de caráter social o seu correspondente suporte individual e psicológico.
O discurso da sua ficção está enredadamente tecido ao curso da sua vida e da vida de todo homem que nasce excluído do pequeno paraíso capitalista, que de tão minúsculo já foi repartido entre os felizes eleitos. A elite. Aos outros, resta-nos o consolo do purgatório. Ou a ameaça do inferno. O grito dos personagens torguianos é, por isso, arrancado de cada palavra presa na garganta de todos nós.
Perscrutar o não-dito e transformá-lo em palavra plena é o prodígio operado pela escrita poética. Daí a lição sobre o fazer literário, ou do caçador da vida, que Miguel Torga nos deixa: “Se quisesse e soubesse dizer por que trilhos passara, falaria de veredas e carreiros que nunca conhecera, descobertos na ocasião pelo instinto dos pés, e rasgados no meio de uma natureza cósmica, verde como uma alucinação” (cf. «O Caçador»).
No mundo da escrita de Miguel Torga, os sonhos vividos — no silêncio da noite solitária da montanha — constituem a matéria prima da construção social. Assim, a linguagem deste contista exemplar, embora marcada pelo vocabulário de uma região, traduz a fala da aldeia na língua do invento mais luminoso e visível à razão de todos os homens.
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NOTA BIBLIOGRÁFICA
Por sugestão da doutora Andrée Crabbé Rocha (ver informação), viúva do escritor Miguel Torga, a quem agradeço, este ensaio — “Os Sonhos do Sujeito e sua Construção Social” — foi escrito para ser publicado, originalmente, como apresentação da edição brasileira de Novos Contos da Montanha. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, p. 1-8.