Sumário


O Silêncio do Orfeu Rebelde
e Outros Escritos sobre Miguel Torga
Capa da edição impressa do livro
O Silêncio do Orfeu Rebelde
e Outros Ensaios sobre Miguel Torga.
Salvador, Cedap / Oficina do Livro, 1999.


Os Artigos e Ensaios

 
I Nota Prévia

II
Os Sonhos do sujeito
e sua Construção Social


III O Conto como Metáfora
da Criação Artística


IV Portugal
e sua Arca de Noé


V O Silêncio
do Orfeu Rebelde


 
VI Um Conto de Miguel Torga

VIII Outro Conto / Mago


VIII Bibliografia de Torga







Cid Seixas,
autor
O Silêncio do Orfeu Rebelde






Para informações sobre o escritor Miguel Torga, ver o verbete da Wikipédia ou o site Passeibweb, 0nde se publica o conto "Mago". Há também uma edição on-line de Novos Contos da Montanha, no site Scribd.

Nota Prévia

Este livrinho, editado pelo CEDAP com o seu selo fantasia Oficina do Livro, é uma simples reunião de textos dispersos, publicados em jornais, revistas e outras fontes, sobre a obra de Miguel Torga. Às vezes, o foco resvala da obra para o homem, numa confissão involuntária da crença segundo a qual a escrita se enriquece pelo conhecimento da vida que a gerou.

Nada de intencional, apenas o curso do dizer forma o dito.

Nascida em corpo de palavra, a gente passa a aceitar a idéia e a acreditar nela, como coisa concreta que de fato é. Assim, nasce parte do que penso e digo. Sem outra pretensão.


“Os Sonhos do Sujeito e sua Construção Social” foi publicado originalmente como apresentação da edição brasileira de Novos Contos da Montanha. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, p. 1-8.

“O Conto como Metáfora da Criação Artística” saiu em Quinto Império; Revista de Cultura e Literaturas de Língua Portuguesa. Salvador, nº 1, 1986, p. 31-41.

“Portugal e sua Arca de Noé” foi publicado na coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salva­dor, 5 ago. 96, p. 7.

“O Silêncio do Orfeu Rebelde” foi escrito, sob o impacto da morte de Miguel Torga, para Padrão, Revista da Associação da Amizade Bahia-Portugal. Ano II, nº 4, Salvador, abr. 95, p. 5-6.


No mais, até aqui se trancreveu a "Nota Prévia" do livrinho impresso intitulado O silêncio do Orfeu Rebelde e outros escritos sobre Miguel Torga; ensaios. Salvador, Oficina do Livro, 1999 (Tiragem restrita e fora do comércio).

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Para outras informações sobre o escritor Miguel Torga, ver o verbete online da Wikipédia ou o site Passeiweb, onde se publica o conto "Mago".


Os Sonhos do Sujeito e sua Construção Social


A história deste livro começou no Brasil, em 1941, quando Miguel Torga publicou a primeira edição de Contos da Montanha. Três anos depois, ele reuniu outras narrativas situadas no mesmo cenário, sob o título de Novos contos da montanha, que, segundo o autor, foi “mais feliz do que o seu irmão gêmeo Contos da montanha, desterrado no Brasil.” Agora são os dois e mais alguns outros (como o Diário, Bichos e Portugal) que migram para o nosso país e encontram acolhida numa casa ampla e confortável — a Nova Fronteira. Aqui, milhares de leitores aguardam os velhos conhecidos que, por fim, são reencontrados e chegam para ficar.

Numa época em que muitos portugueses foram expulsos das suas províncias pela fome que ameaçava a uns e batia à porta de outros, o Brasil acolheu levas de emigrantes. Alguns viveram no campo as mesmas vicissitudes das quais fugiram; outros encontraram na cidade grande oportunidade para construção de uma nova vida. O menino Adolfo Rocha, que mais tarde se tornaria o escritor Miguel Torga, esteve entre os primeiros: veio para o Brasil aos treze anos, trabalhando numa fazenda em Minas Gerais como apanhador de café, destocador de pastos, vaqueiro e caçador de cobras. Diante das dificuldades enfrentadas como emigrante, retornou a Portugal cinco anos depois, em 1925.

A força de vontade e a capacidade de trabalho deste homem extraordinário fizeram com que em 1928, o antigo trabalhador braçal publicasse seu primeiro livro, Ansiedade. Daí por diante seguiu-se uma obra vasta e de alta qualidade que chega a mais de cinqüenta títulos. De trabalhador rural, em Minas Gerais, a médico conceituado, em Coimbra, a ascensão permitiu ao escritor se dedicar a construir um conjunto de obra que hoje representa um dos maiores patrimônios literários de língua portuguesa.

Por circunstância ou motivo ainda pouco conhecido, os Contos da Montanha foram originalmente publicados no Brasil, onde alcançaram três edições, a segunda em 1955 e a terceira em 1962. Somente em 1969 este livro passou a integrar a coleção editada pelo autor, depois de ser revisto e aumentado.

Agora, ganhando os limites de uma nova fronteira, os Contos da montanha, reunidos aos Novos contos..., chegam novamente às mãos do leitor brasileiro revistos e reescritos diversas vezes pelo autor. Retornam ao Brasil como uma obra nova e atual, mas sem perder as marcas de uma velha aldeia das montanhas portuguesas da primeira metade do século.

É curioso observar nestes contos exemplares o equilíbrio conseguido entre a dimensão individual, psicológica, de cada personagem e a dimensão social. Nos anos quarenta, a literatura portuguesa procurava se libertar da excessiva valorização do plano individual e da subjetividade, imposta pela Geração de Presença, e se aproximava do engajamento e do realismo socialista já assumidos pelo Romance Brasileiro de 30. Ferreira de Castro, um dos precursores dessa tendência neo-realista, levou para a imprensa portuguesa o debate sobre os escritores brasileiros do Nordeste, como Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos.

Foi com grande repercussão que o romance português abandonou as análises intimistas e adotou uma perspectiva de denúncia social, onde o aspecto humano das populações excluídas passou a ser o eixo central da obra. Escritores como Alves Redol, por exemplo, chegaram a copiar os clichês de um Jorge Amado então voltado para as exigências do Partido Comunista.

Neste contexto de descobertas e caricaturas populistas, a obra de Miguel Torga, por não se submeter às exigências do Neo-Realismo, conseguiu atingir o equilíbrio que assegura a permanência de qualquer texto. A preocupação do autor com o destino das figuras de carne e osso que serviram de modelo aos seus personagens é patente tanto nestes Contos da montanha, lançados no Brasil em 1941, quanto nos Novos contos da montanha, publicados em Portugal, em 1944, com novas histórias e novos protagonistas de uma mesma aldeia marcada pelo sofrimento e ameaçada pela miséria.

Mas a ausência de amarras pren­dendo o texto a um figurino ou a uma moda literária, embora afastasse o autor das discussões e da convivência com os grupos da época, deu uma dimensão menos restrita ao trabalho, assegurando o interesse do leitor de qualquer tempo e lugar.

Vista com olhos de hoje, sem as paixões suscitadas pelos dilemas do realismo socialista, a obra de Torga é mais eficiente (mesmo enquanto documento de denúncia) do que os romances panfletários dos neo-realistas de deliberada atitude política. Enquanto o texto torguiano ampliou a dimensão dos problemas pelas lentes da arte, as obras comprometidas com as exigências do movimento Neo-Realista deram destaque às estratégias de denúncia política, perdendo-se nos estreitos limites da ética partidária.

Mas não se pense que Miguel Torga, mesmo distante dos grupos literários estava indiferente aos destinos do seu povo e da sua pátria. Em 1945, na segunda edição dos Novos contos..., ele termina o prefácio de modo direto: “Na tua idéia, o que escrevo, como por exemplo estas histórias, é para te regalar e, se possível for, comover. Mas quero que saibas que ousei partir desse regalo e dessa comoção para te responsabilizar na salvação da casa que, por arder, te deslumbra os sentidos.”

Mais tarde, em 1968, ele escrevia no prefácio da quarta edição dos Contos da montanha: “Quatro décadas de opressão desfiguraram completamente a paisagem do país. A humana e a outra. Velhos desamparados, adultos desiludidos, jovens revoltados — num palco de desolação”.

Destaque-se, portanto, que além de ser o autor de retratos densos e psicologicamente bem focados de homens e mulheres, Miguel Torga não descarnou seus personagens do contexto social. Ele enfrentou o problema, então posto em especial relevo, mas não se limitou ao figurino da moda. Da mesma forma que, anteriormente, não amarrou seu invento à corrente de Presença, também não reduziu o alcance da sua obra ao limite neo-realista. As boas intenções e os sentimentos de solidariedade falavam mais alto no Neo-Rea­lis­mo do que o poder de fabulação, o que era uma amarra a ser quebrada pelos escritores mais ousados e criativos. Ultrapassar tais limites representava colocar o texto literário para além de uma tendência, abrindo para ele as portas da permanência. Assim fizeram os clássicos da modernidade: ultrapassaram a sua circunstância e se inscreveram para além das terras do sem-fim.

Mais alto do que o sentimento do autor é o poder da narrativa de Miguel Torga de criar um universo ficcional que, mesmo sem exigir do leitor não politizado o engajamento intelectual, obriga a este leitor a se comprometer com o destino dos personagens das suas histórias. Torga não faz pregação humanitária. Faz tão somente histórias boas de se ler. Mas as tintas destas histórias pintam uma realidade humana com cores tão vivas que é impossível a qualquer outro ser humano não sentir uma ponta de simpatia e solidariedade pelos habitantes da montanha do invento.



Apesar da obra numerosa e variada, além da densidade surpreen­dente do Diário, é no gênero conto que Miguel Torga dá o melhor de si. Ele é, sem dúvida, o mais apaixonante e tecnicamente bem formado contista português de todos os tempos.

Se o conto surgiu em Portugal na Idade Média, quando os escrivães dos livros de linhagem procuravam usar a imaginação para conferir maior interesse às narrativas sobre a vida dos príncipes e senhores de terras e gentes, este gênero ganhou maturidade no século XIX.


Os românticos e realistas impuseram o conto junto ao gosto do público. Camilo, Herculano, Rabelo da Silva e Eça de Queirós foram alguns dos expoentes do gênero que, para além do seu tempo e do seu lugar, permaneceram como autores de narrativas exemplares. Mas enquanto Camilo e Eça tornaram-se mestres da novela e do romance, Torga fez-se mestre do conto, indo além das conquistas trazidas pelo século precedente.

Bichos, de 1940, é o seu primeiro livro de contos, que já está chegando à vigésima edição, todas revistas, modificadas e acrescidas. Até o último momento da sua vida de escritor, Adolfo Rocha recriava os livros de Miguel Torga, não importando se fosse a segunda ou a trigésima edição, sempre em busca do mistério surpreendente da criação poética. Daí a distância entre uma edição dos anos cinqüenta ou sessenta e outra mais recente de um mesmo livro. Estamos diante de uma outra e mesma obra que apresenta instigantes desafios à critica genética.

A partir desta pequena arca de Noé, cheia de bichos e gente, Miguel Torga criou um novo mundo de contos que, aos nossos olhos de leitores fascinados, passa a limpo o discurso do dia a dia, sublinhando suas injustiças e corrigindo o viés do nosso olhar. Com este mundo inventado aprendemos a ver melhor o mundo que criaram para nós.


É na temática alimentada pelo rico universo humano de Trás-os-Mon­tes que Torga alcança maior densidade. Curiosamente, sua ficção é construída a partir de pedaços vivos da realidade agreste da sua região natal. Os fatos mais insólitos e aparentemente criados pela fantasia são, na verdade, reconstituições de experiências vividas.

E aqui deixo o tom impessoal da escrita, para repetir um depoimento pouco útil, talvez, mas pitoresco. (Cf. o artigo intitulado “O silêncio do Orfeu Rebelde”, escrito por ocasião da morte de Adolfo Rocha, em cujo corpo habitava o escritor Miguel Torga.)

Tive a feliz oportunidade de constatar que alguns dos episódios que compõem seus contos foram vividos ao lado de amigos, conhecidos ou companheiros de caça, uma das paixões do homem Adolfo Rocha. Através de um inesquecível emigrante, o comendador Antonio Carvalho de Araújo, figura maior da comunidade portuguesa na Bahia, conheci o filho da dona do restaurante «A Portuguesa», que ainda hoje funciona num velho casarão da Avenida Sete de Setembro, em Salvador. Este português do Brasil costumava ir todos os anos a Portugal para caçar com um velho médico que conhecera quando ainda era menino: o médico se chamava Adolfo Rocha.

Alguns episódios lembrados pelo companheiro de caça de Miguel Torga estão transfigurados ou recriados aqui e ali, mostrando como a observação atenta do caçador e a vivência do antigo trabalhador rural ganham dimensão artística na escrita mágica dos seus contos, simultaneamente reais e fabulosos.

Daí a angústia de Miguel Torga ao se saber porta-voz de uma gente que nem o pode ler. Contrariamente à ensaiada postura do realismo socialista, onde a solidariedade obedece aos rituais partidários, ele retira da alma do menino de Trás-os-Montes a motivação íntima de um drama coletivo, dando a uma obra de caráter social o seu correspondente suporte individual e psicológico.

O discurso da sua ficção está enredadamente tecido ao curso da sua vida e da vida de todo homem que nasce excluído do pequeno paraíso capitalista, que de tão minúsculo já foi repartido entre os felizes eleitos. A elite. Aos outros, resta-nos o consolo do purgatório. Ou a ameaça do inferno. O grito dos personagens torguianos é, por isso, arrancado de cada palavra presa na garganta de todos nós.

Perscrutar o não-dito e transformá-lo em palavra plena é o prodígio operado pela escrita poética. Daí a lição sobre o fazer literário, ou do caçador da vida, que Miguel Torga nos deixa: “Se quisesse e soubesse dizer por que trilhos passara, falaria de veredas e carreiros que nunca conhecera, descobertos na ocasião pelo instinto dos pés, e rasgados no meio de uma natureza cósmica, verde como uma alucinação” (cf. «O Caçador»).

No mundo da escrita de Miguel Torga, os sonhos vividos — no silêncio da noite solitária da montanha — constituem a matéria prima da construção social. Assim, a linguagem deste contista exemplar, embora marcada pelo vocabulário de uma região, traduz a fala da aldeia na língua do invento mais luminoso e visível à razão de todos os homens.

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NOTA BIBLIOGRÁFICA

Por sugestão da doutora Andrée Crabbé Rocha (ver informação), viúva do escritor Miguel Torga, a quem agradeço, este ensaio — “Os Sonhos do Sujeito e sua Construção Social” — foi escrito para ser publicado, originalmente, como apresentação da edição brasileira de Novos Contos da Montanha. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, p. 1-8.

O Conto como Metáfora da Criação Artística


Miguel Torga é ainda hoje um desconhecido do grande público leitor brasileiro, tão distante do que se publica em Portugal. Embora a obra completa desse dissidente da geração de Presença já ultrapasse os cinqüenta volumes, apenas um foi publicado no Brasil: Contos da montanha, em 1955, reeditado em 1962.

Enquanto este livro permaneceu, para o autor, desterrado no além mar, Torga reuniu exemplos dos mais significativos de narrativas centradas no mistério das montanhas em um outro volume: Novos contos da montanha, obra das mais fecundas em meio ao melhor do conto de Miguel Torga e, conseqüentemente, das literaturas de língua portuguesa.

Mas o leitor brasileiro ainda ficará por muito tempo privado do fascinante contato com este e outros textos do autor do Diário.

Se as publicações das casas editoras mais bem distribuídas de Portugal são impedidas de entrar no Brasil pela política obscurantista posta em prática pelo nosso governo, que filtra a entrada de livros e idéias no país, pela cobrança altíssima do valor do dólar/livro, os textos de Torga ainda estão mais distantes do leitor: é o próprio poeta quem publica os seus livros — o que, por certo, também dificulta a livre circulação das obras tanto aqui quanto lá.

Mas isso não impede que se reconheça nele a condição de artífice de alguns dos melhores contos já es­critos em Portugal, desde a aparição deste ge­nero. Não poucos são pequenas obras primas, que realizam a mais densa dialética da criação literária.

Como exemplo vejamos "O caçador", que figura entre as narrativas de Novos contos da montanha. (1)

Trata-se da história de Tafona, o velho caçador. Com oitenta e cinco anos, a vida para ele era uma estranha, como se a não tivesse conhecido no jeito de viver da aldeia. Aprendendo a perscrutar a natureza e seus seres, desaprendeu o jogo dos homens e as convenções da cultura.

A trama da história é simples: o trajeto de um velho caçador que não mais pode se afastar da vila e da vida dos seus habitantes, pelo cansaço do corpo traído. Os sítios dos arredores e as arengas dos homens e mulheres são agora vizinhos do antigo descobridor de veredas desinventadas.

Assim é que ele não compreende os ciúmes da aldeia a interditar o desejo de Matilde e Avelino, nascido no mato como o instinto das aves ou dos mamíferos, segundo a ordem da natureza.

Todo conto, sabemos, é um recorte da realidade, uma seleção de aspectos que, sendo particulares, abrem as portas tio geral, valendo como símbolos de alguma coisa bem maior.

Sob este aspecto, o conto é uma anti-narrativa, porque seu verdadeiro sentido, sua essência, é inenarrável. Ou ainda, é uma metanarrativa. O que está além da narrativa.

Um conto que se esgota nos limites da história que conta, não é um conto, mas um episódio desgarrado de uma ficção mais ampla, que não se realizou na escrita, não se escreveu, nem nunca se escreverá. Porque todo texto de criação, não importam suas dimensões, é um mundo em si, microcosmo, com suas leis, seus seres, sua própria organização. Se a obra não destrói um mundo para construir um outro mundo sobre os destroços cotidianos que refaz a realidade estabelecida nos sem-limites do espaço de transgressão —, ela não é uma obra de arte. É um exercício formal, ou um discurso conceitual, ou outra coisa qualquer. Por isso, ela subverte a organização do universo, sublinha sua crise; como caminho para superá-la.

Um conto não vale pelo que conta. Mas pelo que não conta. Pelo que se projeta no silêncio da narrativa e fica. E precisamente aquilo que se instala, e habita para sempre a sensibilidade e a inteligência do leitor, que é a essência do conto. E essa essência nunca é dita, porque não cabe nos limites de umas poucas folhas de papel, embora, paradoxalmente, caiba nos signos poéticos contidos nessas folhas.

Se no romance , pouco a pouco , o autor constrói a essência do texto , no conto ela germina no leitor: rompe, brusca, como uma semente num óvulo fértil, depois do encontro. Se o romance lento, longo, se tece pela eloqüência do verbo ou pelo desenrolar gradual da trama, a teia do conto, ágil, se projeta na eloqüência do silêncio. O silêncio de depois do ato desentranha o sentido desse ato/leitura. (2)

Assim é que vejo "O caçador", de Miguel Torga, como um texto que opera simultaneamente com uma linguagem objeto conotativa e com uma metalinguagem. Trata-se, portanto, segundo a teoria de Hjelmslev, de uma semiótica cujo plano da expressão e cujo plano do conteúdo são também semióticas. (3) Em outra palavras: duas direções de leitura são evidentes no conto de Torga. Numa leitura primeira é a condição humana e os limites do vive da aldeia que constroem a história de um velho caçador. Num outra, conotativa (no sentido hjelmsleviano), o caçador é o artista o criador, o poeta — e os caminhos da caça são a sintaxe da composição. Ao mesmo tempo que Torga reflete sobre a condição do homem, este bicho que habita a floresta dos símbolos de que nos fala Baudelaire, (4) a reflexão se funde com uma teoria da arte.

Senão, acompanhemos os passos do caçador plurívoco, camaleão poético, dando a palavra a Miguel Torga para que, sublinhando à margem da narrativa este segundo sentido polar que o texto constrói, cheguemos à verificação da hipótese proposta no título: o conto como metáfora da criação artística.



NAS PEGADAS DO CAÇADOR

"Casara, tivera filhos, mas nada disso o tocara por dentro virgem e selvagem na alma, continuava a caçar" (pág. 53). Sabemos que a literatura em particular, e a arte em geral, é um meio de ver o mundo com olhos limpos e sem as lentes da língua, na tintura do seu registro denotativo . Com outras lentes, achadas por entre as plagas que se olha.

O estranhamento, segundo os formalistas de Praga, o olhar inaugural, segundo a crítica moderna, ou o signo selvagem e outras expressões são modos diversos de dizer a arte como forma de conhecimento que nos apresenta o mundo sob ângulos ainda não captados, descobrindo, às vezes, o essencial ocultado. Por isso, a condição de virgem e selvagem na alma define o caçador palavras.

O mundo e a vivência sempre se reinventam e renovam ato da criação poética, onde é virgem a lousa em que se inscreve a experiência. E como se o espírito da arte estivesse ainda intocado pelos fatos e contornos habituais do mundo, à espera do inusitado. Como o selvagem primeiro, o artista não está contaminado, na vertigem da criação, pelos vícios e vias da cultura, permanecendo aberto ao alumbramento do mundo que se inaugura no signo alquímico do invento.

"A pobre Catarina, a princípio, ainda tentou encontrar naquele destino pontos de referência em que pudesse firmar-se. Mas as respostas vinham tão vagas, tão distantes" — continua Torga a sua narrativa. — "Não era que ele mesmo enredasse os caminhos e despistasse conscientemente a companheira. As peripécias da caça e a cegueira com que galgava os montes é que o impediam à noite de relatar o trajeto seguido. Se quisesse e soubesse dizer por que trilhos passara, falaria de veredas e carreiros que nunca conhecera, descobertos na ocasião pelo instinto dos pés, e rasgados no meio de uma natureza cósmica, verde como uma alucinação, com alguns ramos vistos em pormenor". (pág. 54). O drama de Catarina, que numa já caracterizada "primeira leitura" representa o de tantos parceiros em busca de conhecer os insondáveis caminhos da alma do outro, pode aqui, na outra leitura polar, ser tomado em relação à perplexidade do leitor menos apto a "encontrar pontos de referência em que pudesse firmar-se" para o entendimento do mundo inaugurado pela obra. A dificuldade de Catarina, ao tentar encontrar sentido na direção das pegadas do caçador, figura a tentativa de alguns leitores ou fruidores de uma obra de arte no sentido de acompanhar a construção do mundo contida nessa obra. Em ambos os casos estamos diante da necessidade de migração de um sistema lógico estabelecido para outro que se insinua, sedutor, porém desconcertante, como todo sedutor. (5)

Ao transformar a realidade natural numa nova realidade simbólica, às vezes conflitante com a instaurada pela língua social, o artista enfrenta o risco das suas representações soarem vagas e distantes. Como se vê no conto analisado, não é que ele mesmo enrede os caminhos e despiste conscientemente os companheiros de viagem no mundo dos signos estéticos. As peripécias da busca, da caça ao difuso —sentido amorfo, como diz Saussure (6) — é que impedem o relato preciso do trajeto seguido.

Quando o artista consegue captar novas predicações de forma e novas relações com os objetos, a linguagem comprometida com a formação e as relações convencionais se torna insuficiente para comunicar a descoberta. Às vezes, mesmo, nem a consciência sabe dos caminhos. O mundo antevisto pelo olhar profético da arte no espaço de transgressão é captado por antenas que antecedem ao saber. Assim é que o inconsciente chega primeiro ao difuso universo semiótico das novas relações simbólicas. O artista, nos ensina Torga, se soubesse dizer por que trilhas seguiu, falaria de veredas desconhecidas, descobertas na ocasião pelo instinto dos pés, rasgadas no meio de uma natureza cósmica. Por isso, é verde como uma alucinação, ou nova, à espera de decantação, a imprevista descoberta que constitui o mistério natural da arte.

Este outro enfoque do real, projetado pelo signo estético, também é uma forma parcial de ver o mundo. Assim como cada cultura humana seleciona os aspectos e objetos convenientes aos seus intentos e necessidades, construindo a realidade social, humana, como uma espécie de metonímia, de ângulo ou ponto de vista da realidade natural, a arte também apreende um dos aspectos condenados à sombra, com alguns ramos vistos em pormenor.

É evidente que a função da arte é explorar os aspectos condenados à sombra. Se ela repete de forma graciosa, como quer certa estética que se propõe "ciência do belo", as mesmas articulações estabelecidas, ela é apenas uma harmoniosa coleção de clichês mas nunca obra de arte. A transgressão seria o ponto central da questão. Que o artista pretenda seduzir o fruidor com este tipo de concessão é legítimo, como é legítima toda sedução. Mas se seu trabalho se esvai nesta sedução, estamos diante de uma tema de patologia da arte — conforme se pode ver com desenvoltura no romantismo.

É cego o vôo do artista para além das fronteiras do espaço de convenção que constitui a cultura, mas, como todo vôo, é necessário e gratificante quando apreende no outro espaço os contornos de uma realidade mais satisfatória ao homem.

Como o universo natural na sua totalidade é inacessível à compreensão humana, cada forma de conhecimento projeta suas luzes sob um aspecto particular. A língua, a lógica da cultura, com suas finalidades imediatas, com sua praxis, evidentemente desvia o foco dos aspectos não convenientes às teias em que é tecida. Daí a utilidade da arte enquanto delírio não utilitário: compensar o excesso de lógica e pragmatismo do conhecimento comprometido, permitindo captar outras nuances do natural, ocultadas (mais uma vez esta palavra se impõe) pela disciplina do objetivo perseguido.

Por tudo isso, o caçador "As vezes até se admirava, ao regressar a casa, de tanta bruma e tanta luz lhe terem enchido simultaneamente os olhos" (pág. 54).

Mas, observa Torga: "É claro que nem sempre as horas eram assim. Algumas havia de perfeita consciência, em que nenhum pormenor da paisagem lhe escapava, as próprias pedras referenciadas , aqui de granito , ali de xisto. Mas mesmo nessas ocasiões qualquer coisa o fazia sonâmbulo do ambiente. Era tanta a beleza da solidão contemplada, despegava-se das serranias tanta calma e tanta vida, os horizontes pediam-lhe uma concentração tão forte dos sentidos e uma dispersão tão abso­luta deles, que os olho; como que lhe abandonavam o corpo e se perdiam na imensidão" (pág. 54-55). Aí a dialética da arte , fundindo a razão ao inconsciente, a intencionalidade ao acaso, conforme a expressão do poeta Carlos Pena Filho: "Vertigem lúcida"; título de um dos seus poemas.

O mergulho inconsciente que permite aos argonautas de Ulisses uma perene odisséia no espaço de transgressão, (7) às vezes se abre num relâmpago claro às razões da consciência. A intencionalidade da arte permite a dialética entre razão e delírio, produzindo no texto momentos de clara consciência, quando o criador opera com os valores da cultura e toma como referência a realidade social do seu momento histórico.

De modo análogo ao artista que procura se manter inarredável do trajeto do seu ofício, o caçador de Torga se constitui enquanto ser que habita a palavra: "A caça fora a maneira de se encontrar com as forças elementares do mundo. E nenhuma razão conseguira pelos anos fora desviá-lo desse caminho" (pág. 55).

As limitações impostas pelos anos ao velho caçador da história exemplar de Miguel Torga se assemelham aos momentos de pobreza criativa ou ao fim da imaginação criadora, quando o artista perseguido pelo fantasma do eunuco se debate com a impotência de vôos inventivos, tentando reunir aqui e ali restos de festa e articulações fecundas. "Mas ele lutava, e, embora limitado às cercanias da aldeia, continuava ainda a sonhar. Contudo, sem a liberdade absoluta dos longes, o seu espírito já não podia voar como dantes, A povoação ficava-lhe demasiado perto para lhe ser possível um alheamento como o de outrora. E os olhos, cansados e traídos, começaram a mostrar-lhe o mundo triste dos outros. Contra vontade, observava, então. Mas em casa, à noite, a mulher punha o acontecido a uma luz tão desconforme com o que ele vira, tão alheia à sua compreensão, que fechava a boca e não respondia" (pág. 57).

Cada frase do trecho acima poderia ser sublinhada como uma unidade de sentido, nos remetendo a reflexões sobre o fenômeno estético e fechando a discussão com a diversidade de ângulos que faz de cada obra uma forma de abandonar os limites da convenção para ampliar o espaço da cultura com o acréscimo de novas relações e modos de ver articulados no discurso da arte.

O modo de formar que caracteriza o signo poético é uma transgressão dos modos aceitos pelas instituições da cultura. O texto por conseguinte, capta o mundo a uma luz desconforme, alheia à compreensão comum. "De maneira que se metia mais consigo com medo do vidro de aumento que deformava tudo e envenenava os sentimentos. Porque uma coisa sabia ele: é que quase um século de caça não lhe endurecera nem lhe empeçonhara a alma. Matara, sim, e matava ainda, se podia, mas não era com ódio, a gritar maldição, que o tiro partia. Mais amorosamente do que mortalmente, o dedo premia o gatilho. E quando, a seguir, a lebre esperneava ou a codorniz gemia, a sua mão aligeirava docemente aquela agonia, numa carícia aveludada. Entre o sangue da perdiz morta — que através do cotim da calça, morno, lhe acordava a consciência da pele — e o seu próprio sangue, não havia o muro de nenhuma desarmonia. A morte que a arma fazia tinha no mesmo instante uma ressurreição dentro dele" (pág. 58).

A riqueza simbólica do texto remete à idéia segundo a qual a criação artística exige a destruição do mundo caduco, de que fala o poeta, para erguer sobre seus escombros os planaltos do invento. Mas, por outro lado, a arte não prescinde dos materiais e descobertas que antecedem o seu fazer: é celebrado um processo de harmonia e rompimento que só a consciência da pele pode engendrar. O trânsito de um espaço a outro.

Ao mesmo tempo em que a arte se inscreve no espaço de transgressão, com relação à cultura da qual nasceu, ela também pode ser vista como integrante do espaço de convenção contra o qual se instaura. Sendo uma instituição da cultura, legitimada pelas convenções das quais se faz transgressora, a arte é, na verdade, um elo simultâneo: de ruptura e agregação (Thanatos e Eros), destinado a contribuir com a dinâmica do espírito humano.

Ao irromper — rumo ao espaço de transgressão, onde Eros brinca, e reina — a arte não pode se afastar da base que lhe sustenta e a qual tenta modificar, sob pena de se desmoronar enquanto tal. Tendo diante de si a tarefa de captar e enformar a nova realidade, ela possibilita o trânsito entre a descoberta e as convenções da cultura. Ao estreitar a distância que separa a rotina cotidiana do relâmpago do invento, a arte cumpre o seu papel de agente dilatador do espaço de convenção, incorporando a ele o que antes era transgressão difusa.

O personagem central do conto analisado, ao tempo em que é ele próprio um transgressor do mundo da aldeia, personifica, enquanto metáfora, a transgressão . O caçador abandona os contornos da moralidade tradicionalmente defendida, indo buscar na natureza em estado puro — não contaminado pelos genes da cultura — o sentido maior do desejo. Compelida pelas convenções ancestrais a interditar os jogos de Eros, a aldeia concebe imoral a imantação entre Matilde e Avelino, para os quais cada clareira do mato era um Éden de macieiras frondosas. Cada habitante do ciúme se julgava um Anjo do Senhor destinado a impedir o pecado original ou a descoberta da árvore da ciência. Travassos, como lhe pedia o cotovelo, era o mais zeloso guardião dos donzéis, sempre ocupado em perseguir os amantes e manter toda a gente informada.

Já Tafona, o caçador, de seivas contrárias se nutria. Umbilicalmente ligado à natureza era incapaz de entender "o tecido de razões com que era feito o mundo que o cercava, a malha que menos o prendera era aquela onde se debatiam forças e gestos de amor. O cio, a brisa de sêmen que agitava todos os seres vivos durante alguns dias em cada ano, sabia-lhe à frescura de uma onda sagrada" (pág. 59). Por isso o caçador silenciava. Batia-lhe estranho o modo com que a aldeia tecia sua lógica: se via compreensiva a corrida cega das rezes e fêmeas do pasto, a pulsação do sangue de uma mulher tocada pelas setas do Arqueiro lhe parecia crime.

Assim, mais se fazia fundo o fosso vazio de palavras entre o velho e o mundo da aldeia. O silêncio e a distância crescia afastando as paralelas da compreensão e esboçando a conformação de duas realidades polares que Tafona habitava. O conto termina com o episódio da incansável perseguição do jovem Travassos ao desejo dos amantes, na mira do caçador. Como a idade lhe obrigasse a não mais explorar as veredas desconhecidas, Tafona quedava escondido por entre as moitas da redondeza, a espreitar qualquer bicho pequeno, qualquer caça vadia.

— "Os passos eram da Matilde, sorrateira, a saltar um barranco e a sumir-se na vinha.

—É boa!... murmurou outra vez intimamente, agora noutro tom. Mas ainda o seu espanto não acabara, já o Avelino, do lado do monte, lépido, deslizava para o meio da ramagem.

Riu-se. Desta vez riu-se com a sua mansidão habitual, sem barulho, enternecidamente, como se estivesse nos velhos tempos e visse no azul do céu dois pintassilgos a voar para o mesmo ninho.

Infelizmente, os namorados a desaparecerem, e sobre eles de nariz no rasto, numa perseguição de rafeiro, o Travassos que por acaso, caminhava direito à arma do caçador.

O Tafona nem teve tempo de pensar. Parou a respiração e encolheu-se quanto pôde atrás do esconderijo.

O abelhudo vinha apressado e chegou a tiro.

— Alto lá! — ordenou-lhe então, sereno, mostrando o corpo.

O Travassos estancou apalermado. Por fim viu quem era e falou-lhe:

— Sou eu, ó ti Zé!

— Bem sei. Mas não te mexas.

— O Travassos, ti Tafona. Deixe-me ir salvar a infeliz! A tremer e de olhos esgazelados, o zeloso coscuvilheiro não conseguia perceber. Mas Tafona tinha-lhe friamente a espingarda endireitada ao peito, e ninguém da aldeia confiava na alma solitária do caçador.

— Alto, e nem tugir nem mugir! Aquelas coisas querem-se na paz do Senhor..." (p. 62-3).


JUNTANDO OS ESTILHAÇOS

Para concluir, não é preciso traduzir em linguagem denotativa esta longa transcrição do final do conto. Basta, apenas, juntar o chumbo miúdo espalhado pela arma do caçador na mira do alvo incerto.

A natureza sempre foi o ponto de partida dos artistas, tendo alguns momentos históricos se caracterizado pela contemplação elevada à condição de modelo. Mesmo as atitudes de isolamento — quando o artista abandona a realidade urbana, construtora da realidade social e humana, para se refugiar na natureza pitoresca — presentificam uma busca de consciência, ou, pelo menos, conduzem a ela. Se os parâmetros e valores da cultura desembocam no non-sense, os homens precisam descobrir novos pontos cardeais.

Na fuga romântica à natureza estaria também presente o direcionamento para a transgressão, a possibilidade de descoberta de novas relações destinadas a modificar a realidade do conhecimento. É precisamente por isso que um Göethe, para citar apenas um exemplo máximo, irrecusável, conseguiu impor a sua arte como momento significativo do vôo do espírito prisioneiro.

Por outro lado, é do aprovei­ta­mento do mergulho na natureza empreendido pelos românticos que os realistas construíram os mais sólidos alicerces do movimento — ou que alguns românticos ergueram a consistência do seu invento.

Assim, a literatura moderna, mesmo quando plantada em meio às flores e verduras verbais do romantismo, não pode ser acusada como faz uma certa crítica desesperadamente "atual", de saudosista ou anacrônica. É preciso ir além dos significantes, porque muito autores que convidam o leitor a caminhos aparentemente fáceis conseguem ultrapassar o puro deslumbramento diante da natureza exuberante e empreender a viagem insondável.

Por fim, repito, leio o conto de Torga como metáfora da criação artística — onde cada teia da trama figura um elo estrutural da composição — porque, entre outros caminhos, a trilha do caçador é ela mesma um processo de transgressão. Se o personagem se constitui enquanto gauche, anjo torto do poeta, sua sedutora solidão nos convida a compartilhar este espaço desabitado, elegendo-o varanda ou mirante do nosso espaço cotidiano. Com ele descobrimos que, além dos nossos olhos, ainda há o que mirar.

Bandeirante ou desbravador — as trilhas do caçador conduzem à clareira cósmica em meio à enredada floresta do trajeto humano.

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NOTAS

1. Torga, Miguel: Novos contos da montanha. 7ª. ed., Coimbra, (1977).

2. Estas relações entre o conto e outras formas foram colocadas anteriormente num artigo que publicamos no Minas Gerais Suplemento Literário, intitulado "Sobre o conto e o poema", em 1980, tendo inclusive provocado uma série de depoimentos sobre o conto naquele mesmo suplemento, quando voltamos a discutir a questão, respondendo às perguntas formuladas pelos editores.

3. Cf. Hjelmslev, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Trad. J. C. Neto. São Paulo, Perspectiva, 1975.

4. Lembramos o poema "Correspondências", onde Charles Baudelaire diz que
"La Nature est un temple où des vivants pilliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L 'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui I'observent avec des regards familiers".

5. O problema da sedução e da criação artística chamou nossa atenção num trabalho apresentado ao Encontro de Literatura Portuguesa, realizado em 1982 na Universidade Federal de Pernambuco, O desatino e a lucidez da criação. Fernando Pessoa e a neurose como fonte poética. Aí se partia da afirmativa do próprio Pessoa de que a histeria é a base do gênio lírico. Sublinhada a permanente tentativa de sedução por parte do poeta, tanto nos textos de criação quanto nos teóricos, lembramos que a sedução tem se mostrado, através da prática analítica, uma constante nos quadros de histeria. O histérico seduz o interlocutor para que este entre no seu jogo. E o artista? A questão, no entanto, precisa ser aprofundada.

6. Segundo Saussure, antes da língua emprestar a sua forma, constituindo o significado, o que existe é uma zona amorfa, onde o difuso paira. "Filósofos e lingüistas sempre concordaram em reconhecer que, sem o recurso dos signos, seríamos incapazes de distinguir duas idéias de modo claro e constante. Tomado cm si, o pensamento é como uma nebulosa onde nada está necessariamente delimitado. Não existem idéias preestabelecidas, e nada é distinto antes do a aparecimento da língua". Ferdinand de Saussure: Curso de lingüística geral. São Paulo, Cultrix, 1972. p. 130.

7. A propósito, os poetas antigos comparavam a composição de uma obra com uma viagem de navio. “Compor é fazer-se de vela”. Ver especialmente o item "Metaforismo" em Ernest Robert Curtius: Literatura européia e idade média latina. 2ª ed. Brasília, INL, 1979.

Portugal e sua Arca de Noé


Enfim o leitor brasileiro começa a encontrar nas livrarias alguns títulos da bibliografia de Miguel Torga. Há cerca de dois meses foram publicados Contos da montanha e Novos contos da montanha, que reúnem as mais instigantes narrativas daquele que é talvez o maior contista português de todos os tempos. Estes dois livros são para ser lidos e relidos por toda a vida e, em cada nova leitura, revelam caminhos ainda desconhecidos. São obras essenciais sobre a criatura humana, sua desconcertante simplicidade, seus enredados mistérios.

Agora a Nova Fronteira, detentora dos direitos da obra do autor no Brasil, anuncia a publicação de A criação do mundo e entrega ao público dois outros volumes: Bichos e Portugal. Este último (1)
reúne impressões de algumas das principais regiões geográficas do país (de Trás-os-Montes ao Algarve), escritas por um cronista sempre apaixonado pela sua terra. Para os portugueses que vivem no Brasil poderá ser uma leitura agradável, mas para aqueles que, como eu, desconhecem a gente e os costumes dos lugares celebrados o livro não tem maior atrativo.

Em compensação, Bichos é um lançamento capaz de encantar qualquer leitor sensível. Publicado pela primeira vez em 1940, reúne os primeiros contos do autor. É como se ele quisesse fazer um inventário de tipos humanos compreendidos a partir dos seus impulsos ancestrais, da sua condição animal. O pequeno livro que chega à vigésima edição em português (sem contar com as traduções para o romeno, o francês, o espanhol, o alemão, o japonês e o servo-croata) traz quatorze histórias curtas de bichos e gente. Bichos que remetem ao universo simbólico dos homens; pessoas que confundem seu viver com o destino animal.


São contos simples, singelos, mas escritos por um artista admirável, que realça a constante novidade da língua sem fazer as acrobacias que transformam a fala num espantalho de artifícios. Miguel Torga escreve como se estivesse passando a limpo, ou surpreendendo na sua essência mais profunda, a fala da gente simples da sua aldeia.

Por isso ele não procura marcar as diferenças superficiais do dizer do povo, como quem grafa o pitoresco; ele busca o sentido profundo de uma vivência rica de humanidade, reunido por gerações que se acumulam neste pequeno e bem guardado cofre de segredos que é a língua particular de cada região e, na verdade, comum aos usuários do mesmo idioma, que saibam espreitar suas sendas.

Como a ambição deste escritor sempre foi ser um porta-voz da sua gente, ele nos traz as palavras ásperas e plenas, como um recém-nascido, da fala da aldeia. Mas descobre (ou inventa) sentidos múltiplos que a partir do seu texto de escritor ficam incorporados ao idioma de todos nós como frutos maduros e de sabor desconhecido, trazidos das montanhas.

Assim, o leitor desatento, ou apressado, pode ver na linguagem de Miguel Torga apenas o registro de um velho e saudoso menino de Trás-os-Montes. Mas o leitor paciente e disposto a surpreender o encanto que se esconde por trás de cada palavra desconhecida e de cada frase estranha às ruas da cidade grande, compreende o engenho do invento: a rústica e bem elaborada narrativa de Miguel Torga.

Para quem não aprecia o oxímoro, a dialética do ser vislumbrada em dizer, tal afirmativa soará tão estranha quanto o contraditório mundo dos homens que o escritor traduz em arte e palavra. Para os outros, de olhos e ouvidos curiosos como um menino, estas historinhas de bichos e gente ajudam a espreitar o sentido da natureza e do mundo dos homens. Os dois contos que fecham o volume nos alertam para o sentido simbólico do conjunto.

“Jesus” é o nome do menino que descobre um ninho no galho mais alto da árvore. O inesperado personagem inclui a cosmologia cristã em meio à “natureza cósmica” do pensamento torguiano. Vicente, o corvo da narrativa final, na sua desobediência ao Criador, fugindo da Arca em que o Senhor guardou os eleitos do dilúvio, faz do seu insensato gesto um grito de liberdade.

Quando todos os bichos experimentavam o doce recolhimento dos escolhidos para a vida, Vicente, o corvo, fugiu da arca para gozar a liberdade das águas enfurecidas e desafiar a morte.

Escritor de um Portugal tantos anos submetido ao silêncio e ao arbítrio de uma ditadura, Torga celebra o risco da desobediência como uma apologia da liberdade. É o que nos alerta a prefaciadora do livro, a velha mestra Cleonice Berardinelli, que na sua breve lição analisa as diversas situações narrativas, guiando o leitor em meio as urzes e as torgas dos caminhos da escrita. Levados pelas mãos experientes desta guia, o leitor brasileiro poderá admirar e compreender a paisagem do mundo criado por Miguel Torga.

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1. TORGA, Miguel: Bichos. Contos; apresentação de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, 136 p.

O Silêncio do Orfeu Rebelde




Comecemos com a verdade da poesia:

“Desço aos infernos, a descer em mim.
Mas agora o meu canto não perfura
O coração da morte”

— são palavras de abertura de um dos poemas de Orfeu Rebelde, de Miguel Torga, o grande escritor português morto recentemente, aos oitenta e sete anos de idade. Autor de cerca de uma centena de livros, incluindo-se poesia, conto, romance, teatro, ensaio e memória. Somente o Diário de Miguel Torga chega a quase vinte volumes, tendo o primeiro volume sido publicado em 1941 e já atingido oito edições.

Nascido a 12 de agosto de 1907, na aldeia de São Martinho de Anta, Trás-os-Montes, Adolfo Rocha (nome civil de Torga) viveu uma infância humilde na zona rural e veio para o Brasil aos treze anos, trabalhando numa fazenda em Minas Gerais como apanhador de café, destocador de pastos, vaqueiro e caçador de cobras. Diante das dificuldades enfrentadas como emigrante, retornou a Portugal cinco anos depois.

A inteligência e a força de vontade de Adolfo Rocha possibilitaram que o trabalhador rural que retornou do Brasil aos dezoito anos de idade, publicasse seu primeiro livro apenas três anos depois, cuja poesia viria a merecer, em 1930, a apreciação de Fernando Pessoa, numa longa carta. Formado em Medicina pela Universidade de Coimbra, Adolfo Rocha estabeleceu-se como otorrinolaringologista nesta cidade, em 1941, exercendo a especialidade por cerca de quarenta anos.

Apesar da sua obra numerosa e variada, creio que é no gênero conto que Miguel Torga dá o melhor de si. Ele é sem dúvida o maior contista português de todos os tempos. Se o conto surgiu em Portugal na Idade Média, quando os escrivães dos Livros das Linhagens procuravam usar a imaginação para conferir maior interesse às narrativas sobre a vida dos senhores feudais, este gênero ganhou maturidade no século XIX. Os românticos e os realistas impuseram o conto junto ao gosto do público português. Camilo, Herculano, Rabelo da Silva e Eça de Queirós foram alguns dos expoentes do gênero. Mas enquanto Camilo e Eça tornaram-se mestres da novela e do romance, Torga fez-se mestre do conto.

Bichos, de 1940, é seu primeiro livro de contos, do qual já foram feitas dezenove edições. No ano seguinte publicou Contos da montanha, inicialmente editado no Brasil. Em seguida Torga resolveu ele mesmo ser o seu próprio editor, iniciando assim a publicação da sua obra completa, com cerca de cem volumes, todos impressos nas oficinas da Gráfica de Coimbra. O autor passou a financiar, editar e distribuir os seus livros; e embora até hoje sigam o mesmo estilo artesanal da primeira metade do século, todos alcançaram muitas reedições. Enquanto isso, os Contos da montanha ficaram desterrados no Brasil, segundo expressão do próprio Miguel Torga que, para compensar, publicou, em 1944, Novos contos da montanha.

É na temática alimentada pelo rico universo humano de Trás-os-Montes que ele alcança maior densidade. Curiosamente, sua ficção é construída a partir de pedaços vivos da realidade agreste da sua região natal. Os fatos mais insólitos e aparentemente criados pela fantasia são, na verdade, reconstituições de experiências vividas.

Volto a registrar a feliz oportunidade de constatar que alguns dos episódios que compõem seus contos foram vividos ao lado de amigos, conhecidos ou companheiros de caça, uma das paixões do homem Adolfo Rocha. Através do inesquecível comendador Antonio Carvalho de Araújo, figura maior da comunidade portuguesa na Bahia, precocemente desaparecida, conheci o filho da dona do restaurante “A Portuguesa”, que ainda hoje funciona num velho casarão da Avenida Sete. Para minha surpresa, ele contou que costumava ir todos os anos a Portugal para caçar com um velho médico que conhecera quando ainda era menino. Este médico se chamava Adolfo Rocha. (*) Alguns episódios lembrados pelo companheiro de caça de Miguel Torga estão transfigurados ou recriados aqui e ali. Vemos, portanto, como a observação atenta do caçador e a vivência do antigo trabalhador rural ganham dimensão artística na escrita mágica dos seus contos, simultaneamente reais e fabulosos.

Mas a obra de Miguel Torga é muito mais do que cabe nesta pequena nota, escrita para atender ao convite do Cônsul Geral de Portugal na Bahia. Era noite, quando ele telefonou comunicando a morte do velho Miguel Torga, que há muito tempo padecia de doença irremediável. Ao se despedir, solicitou que eu escrevesse um pequeno texto para a revista Padrão, editada pelo Consulado.

O grande público leitor brasileiro sempre se viu privado da obra de Torga que, em vida, editava e distribuía seus livros por conta própria. Após a sua morte, a família assinou contrato com a Novo Aguillar para a publicação, no Brasil, da obra completa desta figura exponencial da literatura portuguesa em volume com capa de couro e papel bíblia.

Espera-se que, paralelamente, seus vários livros sejam publicados em brochura, atendendo a um público mais diversificado e numeroso.

Para começar a falar da morte de Torga, iniciei o texto com os versos de abertura de Orfeu Rebelde e, para terminar, acrescento os versos finais, sobre o terrível destino do homem enquanto ser finito.

“E entro finalmente
No reino tenebroso
Das minhas trevas.
Quebra-se a lira,
Cessa a melodia;
E um medo triste,
de vergonha e assombro,
Gela-me o sangue,
rio sem nascente,
Onde o céu, lá do alto, se reflete,
Inútil como a paz
que me promete.”


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NOTA

Cf. “Os Sonhos do Sujeito e sua Construção Social”, publicado originalmente como apresentação da edição brasileira de Novos Contos da Montanha. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, p. 1-8.

Miguel Torga / Um Conto

O Alma-Grande

Miguel Torga

Riba Dal é terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o Padre João benze, perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e respostas.

– Quem é Deus?

– É um Ser todo poderoso, criador do Céu e da Terra.

Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, não há quem possa desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o Pentateuco. Mas está. E à hora da morte, quando a um homem tanto lhe importa a Thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos retoques à pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão daquele segredo – abafador.

Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas deste mundo e salvar a honra do convento, o maior de que há memória é o Alma-Grande.

Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no Destelhado, uma rua onde mora ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro. Quem vinha chamar aquele pai da morte já sabia que tinha de subir pela encosta acima a lutar como um barco num mar encapelado.

– Raios partam o vento!

Mas quê! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa da esquina, sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanábria a varrer a ladeira.

Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome.

– Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!

– Lá vai…

Daí a nada a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho passavam guia ao moribundo.

Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos igual à que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo tempo com terror e gratidão. Às vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo, levantava-se do fundo da consciência e protestava; mas no dia seguinte acontecia ser essa mesma voz que no alto do Destelhado, sobrepondo-se à força do vento, o reclamava.

– Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!

– Lá vai…

E aparecia à porta logo a seguir.

Quando a hora do Isaac chegou, foi um filho, o Abel, que trepou a ladeira. O garoto vinha excitado, do movimento desusado de casa, da maneira estranha como a mãe o mandara chamar o Tio Alma-Grande, e da ventania.

– Que tem o teu pai, rapaz?

O pequeno olhou fixamente a cara seca do abafador.

– Febre…

– Bem, vamos então lá…

– E que é que o Tio Alma-Grande lhe vai fazer?

– Vê-lo…

Pela rua abaixo só o vento falava. Rouco de tanto bradar, monocórdico, persistente, era nele que tinha expressão a intimidade de ambos: um, o pequeno, nervoso, inquieto, a braços com pressentimentos confusos, que se recusavam a sair-lhe do pensamento; o outro, o velho, a aceitar aquele destino de abreviar a morte como um rio aceita o seu movimento.

Em casa havia lágrimas desde a soleira da porta. Mas a entrada do Alma-Grande secou tudo. Atrás dos seus passos lentos e pesados pelo corredor ficava uma angústia calada, com a respiração suspensa.

– O que é que ele lhe vai fazer? – perguntou de novo o Abel, agora à mãe, quando a porta do quarto se fechou.

A Lia respondeu ao filho com duas lágrimas silenciosas pela cara abaixo.

Lá dentro, colado à cama que a transpiração alagava, o Isaac parecia ter chegado ao fim. Branco, com dois olhos perdidos no fundo da cara, opresso, como que só esperava a ordem de largar a vela. Tinha adoecido havia quinze dias. Um febrão tal que o Dr. Samuel desanimou. Veio, tornou a vir, e acabou por aconselhar que tratassem do caixão. Mas o Isaac era cedro do Líbano, rijo, no cerne. Depois desse desengano ainda o mal o roeu seis dias sem o comer. E sempre de olhinho vivo. Gemia, gemia, finava-se, mas com aquelas duas contas de azeviche a reluzir. Acabou, contudo, por lhe pousar no rosto uma sombra estranha; e a mulher, a Lia, abriu mão da esperança. Dois dias mais, e como na sala a D. Rosa lembrasse a confissãozinha, um irmão do Isaac, o Daniel, chegou-se à cunhada e deixou cair, entre duas palavras de consolo, o nome do Alma-Grande. A Lia, a princípio, reagiu quanto pôde. Mas a perspectiva do padre João a entrar-lhe pela casa dentro venceu-a. Mal rompeu a manhã, com uma voz que fez medo ao filho, mandou-o chamar o abafador.

Quando o Alma-Grande entrou, o Isaac estava no auge de um combate que quase sempre se trava de corpo estendido. O inimigo era uma parte de si mesmo apostada em perdê-lo. E a outra metade, um pedaço de ser nobre e agradecido à seiva, corajosamente defendia o resto da muralha. As bagadas pelas têmporas abaixo e um ritmo apressado da respiração davam sinal desta guerra. Mas de nada mais precisava, quem olhasse com limpos olhos humanos, para sentir a grandeza e a solenidade de tal hora.

Por desgraça, o Alma-Grande não podia ver aquilo. Insensível à profundidade dos mistérios da vida, sem o estremecimento de uma fibra sequer, avançou para o leito num automatismo rotineiro. O seu papel não era olhar; era ir inteiro com as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirar-se uns minutos depois, como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a sua função.

No seu castelo o Isaac pelejava sempre. O fole pressuroso do arcaboiço metia ar na fornalha; espesso, cálido, activo, o suor ia brotando do vulcão.

A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos petrificados e mudos. Só no quarto havia movimento e palpitação.Calado, o Alma-Grande avançou. Mas quando de mãos abertas e joelho dobrado ia a cair sobre o Isaac, fê-lo parar uma voz diferente de todas as que ouvira em momentos iguais, que parecia vir do outro mundo, e dizia:

– Não… Ainda não… Ainda não…

Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão sagrada! Quantas vezes! Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra maneira.– Não… Não… Ainda não…

Um pano escuro que até ali vendara os olhos do Alma-Grande queria rasgar-se de cima a baixo. E o abafador, paralisado entre as trevas do hábito e a luz que rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino.

– Não… Ainda não… Ainda não…

Era terrível o que se passava. À luta que o Isaac sustentava contra forças que nunca ao certo se conheceram, juntava-se o embate dos dois homens, um a saber que ia matar, outro a saber que ia ser morto.

Estiveram assim algum tempo, de olhos cravados um no outro, a medir-se. Pesado, o suor escorria pela cara do Isaac; quente, o sangue martelava nas têmporas do Alma-Grande.

Foi o ruído súbito e em guincho de uma porta que fez explodir aquela concentração. O barulho a ouvir-se, e o Alma-Grande, como um peso suspenso e de repente liberto, a cair em cima do moribundo. Nem uma palavra só. Apenas um baque surdo, e as mãos sôfregas do agressor à procura do pescoço do lsaac.

Mas a porta que rangera dera entrada a alguém. A um vulto que o Alma-Grande adivinhava atrás das costas, parado, lívido, a tentar compreender.

Um esforço supremo do Isaac para se livrar das garras que o apertavam e a presença atónita do Abel, tiraram às mãos e ao joelho do Alma-Grande a força habitual. Bem que se extremara nele o assassino, o animal que bebia a grossos tragos o fio de vida que encontrava no caminho! Bem que se lhe avivava na consciência a certeza de que era matar a razão do seu destino! Em vão. O puro instinto não tinha coragem para empurrar aquelas mãos e aquele joelho diante de uma testemunha.

Ergueu-se. Com o rosto coberto por um pano de lividez igual à do agonizante, voltou-se. E sem coragem para encarar os arregalados e aflitos olhos do pequeno, que o varavam, silenciosamente, saiu. Atravessou a sala cabisbaixo, longe da majestade trágica das outras vezes. Deixava atrás de si a vida, e a vida não lhe dava grandeza.

Quando, um segundo depois, a Lia, como um bicho culpado, entrou no quarto, o filho estava sentado na cama, com a pequena mão na testa do pai. A criança debatia-se num agitado mar de brumas; mas o seu coração ditava-lhe a mãozita ali, na fronte escaldante do que lhe dera o ser, do mesmo modo que lhe ordenara já a entrada sorrateira e inquieta no quarto.

E foi talvez o gesto inocente e filial que fez correr novamente nas veias do Isaac o sangue da confiança. Sem confissão, vinte dias depois comia o caldo ao lume como se nada tivesse sido. E nada tinha sido realmente para toda a gente da terra, menos para ele, para o pequeno e para o Alma-Grande. Os outros passaram da agonia à morte e da morte à ressurreição, na inconsciência de quem passa do calor ao frio e do frio novamente ao calor. Só os três sabiam, de maneiras diversas, que o drama fora mais negro e profundo. O Isaac vira as garras da morte ao natural; o Alma-Grande olhara pela primeira vez a escuridão do seu poço; o garoto, esse, pressentira coisas que não podia clarificar ainda no pensamento.

Vagaroso, o tempo foi deslizando; e com ele apagara-se já de todo na lembrança da terra a doença do Isaac. Missa e Sabath.

Os três, porém, debruçavam-se sem descanso sobre o lago onde se reflectia a imagem negra do passado. O Isaac, cada vez mais dorido, olhava, olhava, e via a vingança; o Alma-Grande, cada vez mais culpado, olhava, olhava, e via o medo; o pequeno, inocente, via apenas a angústia de não entender. E os três formavam como que uma ilha de desespero no mar calmo da povoação. Não se falavam, fora do filho a pedir bênção ao pai, do pai a dar-lha, e de uma saudação ambígua e monossilábica do Alma-Grande ao passar pelo Isaac. Mas traziam-se guardados uns aos outros, como se nenhum deles quisesse perder a hora em que, para a eternidade, varressem do céu das consciências a nuvem pesada que o toldava.

E esse momento, finalmente, chegou.

Vinha o Alma-Grande de ver a filha e os netos, em Bobadela, quando o Isaac, que o seguia como um cão de fila, lhe saltou à estrada. Testemunhas, só Deus e o Abel, que, sem o pai suspeitar, o acompanhava também por toda a parte, e olhava a cena escondido atrás de um fragão.

– Não matarás…

Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a moral tinha outros caminhos, como o próprio Alma-Grande sabia.

– Não matarás…

O Isaac, porém, olhava o Alma-Grande com os mesmos olhos implacáveis que lhe vira nas horas de agonia.

– Não… Não…

Mas o Isaac era o mais novo e o mais forte. E, quando o Alma-Grande foi a dar conta, estrebuchava no chão, de costas, com o pescoço apertado nas mãos do outro, e com a tábua do coração sob o peso infinito de um joelho.

– Não… Não…

O pequeno, do penedo, via a cara congestionada do Alma-Grande, e ouvia o esforço da respiração a forçar o garrote.

– Não…

Possantes, inexoráveis, as tenazes iam apertando sempre. E, com mais um estertor apenas, estavam em paz os três. O Isaac tinha a sua vingança, o Alma-Grande já não sentia medo, e a criança compreendera, afinal.
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TORGA, Miguel. Novos Contos da Montanha. Coimbra [Edição do Autor], 7ª ed., 1977, p. 15-24.

Outro Conto / Mago

(Conto retirado do site http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/
resumos_comentarios/b/bichos
)

Mago respirou fundo. Abriu o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo, porque a noite era clara como o dia e parada como uma montanha. Mas fosse de frescura ou de luz a onda que bebera num trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe correu logo um frêmito de vida nova. Esticou-se então por inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixando-se ficar assim por alguns instantes, só músculos, tendões e nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Deixava-o sem ação, bambo, mole e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha que acabar semelhante degradação! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! E, se lhe restavam dúvidas, reparasse no que estava a acontecer naquele momento: ela a ressonar sozinha, na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigênio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizara de seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e por outras é que chegara àquela linda situação...

- Ouvi dizer que já nem sardinhas comes?!

- Essa agora! É todos os dias...

- E que nunca mais caçaste?

- Ainda esta manhã...

Piadinhas do Lambão. É claro que os mimos de D. Sância lhe haviam deformado o gosto... Metia-lhe os petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais! Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o tempo, debruçado três horas sobre um buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum pobre diabo qualquer que ressonava lá no fundo? Deixá-los viver! As coisas são o que são. Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente a mão a uma ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas novas e nos pardalecos que filava por desfastio na primavera. Que demónio!

- Mas que não saias de casa, sempre agarrado às saias...

Na verdade, saía pouco. Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e ficava-se pelas almofadas... Digestões difíceis, vinha-lhe um migalho de sonolência... Às vezes tentava reagir. Mas o raio da velha, mal o via pôr o pé na soleira da porta, perdia a cabeça! Parecia uma sineta!

- Mago! Mago! Bicho, bichinho!

Regressava aos lençóis, claro. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão... O pãozinho na boca! Que remédio senão torcer caminho e, com as unhas discretamente recolhidas, continuar as carícias de algodão em rama no cachaço da dona...

- E que deixaste a Faísca!...

- Eu?

- Que anda metida com o Zimbro... Pelo menos é o que consta. Que teve até cinco pequenos dele...

- Meus! Muito meus! Do meu sangue!

Pantominice. Um triste chanato na honra do convento. Paleio de chavelhudo manso... a ninhada pertencia inteirinha ao Zimbro. Até pela pinta se via. Todos com o mesmo olhinho remelão... O que ele era era um parrana, um infeliz, embora o não confessasse. Os mimos de D. Sância tinham-no desgraçado. Ah, mas a coisa ia mudar de figura! Estava farto de ser desfeiteado. Ainda há pouco... chegara-se ao pé da mulher, disposto a impor sua autoridade.
- Ouve lá: disseram-se que mos andas a pôr para aí com todo mundo?

E recebe esta pelas ventas:

- Bem haja eu!

- Bem hajas tu?!

- Nunca guardei respeito a maricas!

Só a tiro! Mas a verdade é que a Faísca tinha razão. Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isso de gado fêmeo quer assistência.

Além disso, pesadão, desconsolado. E até esquecido dos ganidos dessas horas... Uma vergonha!

- Aparece logo à noite, pelo Tinoco... Há reunião. E adeusinho...

- Adeus, Lambão.

Foi no quintal, à tarde, quando a D. Sância dormia a sesta. O Lambão, empoleirado no muro, rondava a cozinha da vizinhança, onde assavam carapaus. Por acaso chegara à janela nesse momento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de boa ou má fé, abrira o saco. Mas há males que vêm por bem. Depois da conversa, pensara maduramente no caso, e ali estava agora disposto a ressuscitar daquela vida perdida em que o destino o metera.

Sim, ali estava, a dois passos do Tinoco, o clube da gataria de meia-idade. Bem situado, com saída para dois bairros da cidade, fora fundado pelo maior valdevinos da geração: o Hilário. Era um telhado corrido, quase plano, amplo, alto, mas de onde se podia cair de qualquer maneira numa aflição. Um achado. Como a casa servia de armazém, o Hilário viu de relance as condições do local. E logo no outro dia, os beijos, as mordedelas, os arranhões e os queixumes do cio foram ali.
Bons tempos esses! Namorava então a Boneca, uma gatinha borralheira de a gente se perder.

- Ora viva!

- Miiau...

- Seja bem aparecida, a minha bonequinha!

- Miiau...

Mimo da cabeça aos pés. Mas um rebuçadinho! Depois enrodilhara-se com a Moira-Negra, um coiro velho, curtido e batido. Cada guincho que abria a noite!
- Cala-te lá com isso, mulher!

Isso calava ela! Acabou por se aborrecer. Por fim veio a lambisgóia da Perricha... Uns trabalhos. Ciúmes, fraqueza, dores de cabeça, o diabo!

- Matas-te, filho, arruinas-te...

Palavras sensatas da mãe.

- Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te à sepultura.

Mas quê! O vício pode muito.

Até que a mãe morreu de velhice e desgosto, a Perricha desapareceu do bairro e ele foi cair por acaso no quintal da D. Sância.

- O bichinho está doente. Se calhar é fome...

E a ternura da senhora nunca mais o largou. A princípio ainda tentou reagir, mas, por fim, o corpo, o miserável corpo, acostumou-se ao ripanço. A parva da santanaria cuidava que era amor correspondido. Palerma! Amizade sincera não é com gatos. Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a moleza foi tomando conta dele... E pronto. Quando reparou, estava perdido. Às vezes tinha tentações do inferno. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão contemporizar... Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o estafermo de solteirona nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e a cair de fome e ser capaz de responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora lhe atiravam.

- Olha o Mago!... Olha o milionário!...

O patife do Tareco. Era de o derreter logo ali! A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube à cunha! Parecia de propósito. Raios partissem a D. Sância, e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causa delas, pouco faltava para lhe cuspirem na cara!

- Com que então de visita aos bairros pobres? Obra de assistência ao desvalidos, não?

Até o bandido do Zimbro. Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações à vista de toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que não recebia o troco devido.

- O cavalheiro seja mais delicado...

- Reparem nas falinhas dele... A tratar os amigos por cavalheiros!

- Amigos? Eu não tenho amigos da sua laia!

- Pesam-lhe na testa, coitado!

Desembestou. Cego da cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente as ensanchas do Zimbro eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a simples indignação dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa... É que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou a valer ao golpe esboçado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir, uma saraivada de investidas traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto! No fim da luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e gemia tanto, que até um polícia, em baixo, na rua estreita, se comoveu. O clube, esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente.

Fugiu desvairado pelos telhados. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja, saía um pio agoirento.
Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação, sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa baforada da úmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava cantarinhas no bigode... Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão da velha... Se não fosse ela, em ver de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos com os outros, depois de ter feito o Zimbro em pedaços... Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida... Miséria de destino! Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma...E tudo obra do estupor da sanataria!

Vinha rompendo a manhã. Um sino ao longe deu cinco horas. Abriam-se as primeiras janelas. Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol.

Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo. Maldita D. Sância! Se nunca tivesse conhecido a tal sujeita...

Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista! Queriam ver que ia desmaiar?!

Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor, felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar.

Em que trabalhos o metera o raio da senhoreca! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeira... Coça valente... Por um triz que não se ficava... Muita resistência tinha ele ainda!
A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só então é que reparou: deixava um rastro de sangue por onde passava...

Fez das tripas coração e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Sância! Que nojo! Que ordinarice!

Mas a que propósito vinham agora as perplexidades e as recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara pela cabeça a idéia de resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a voz de Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre, dum conforto castrador... Que abjeção! Que náusea!

E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.

Bibliografia de Torga


As obras de Miguel Torga foram publicadas no seu país, Portugal, em edições do próprio autor, impressas na Gráfica de Coimbra, perfazendo mais de 50 títulos e 200 edições.

Somente os livros publicados em outros países foram confiados às editoras, a exemplo dos que foram impressos após a morte do escritor.

No Brasil, suas obras foram publicadas a partir de 1996, pela Nova Fronteira, sendo os primeiros títulos Contos da Montanha e Novos Contos da Montanha (ambos com prefácio de Cid Seixas), seguidos de Portugal, com prefácio de Jorge Amado, e Bichos, com prefácio de Cleonice Berardinelli.


1928
– Ansiedade (Poesia)

1930
– Rampa (Poesia)

1931
– Tributo (Poesia)
– Pão Ázimo
– Criação do Mundo (4 ª ed. Refundida 1989)

1932
– Abismo (Poesia)

1934
– A Terceira Voz

1936
– O Outro Livro de Job, poesia (5 ª ed. 1986)

1937
– Os Dois Primeiros Dias (4 ª ed. Refundida 1969)

1938
– O Terceiro Dia da Criação do Mundo (4 ª ed. Refundida 1970)

1939

– O Quarto Dia da Criação do Mundo (7 ª ed. Refundida 1971)

1940
– Bichos (16 ª ed. Refundida 1986. Edição Espanhola, Inglesa, Romena, francesa, japonesa, servo-croata, alemã e brasileira)

1941
– Terra Firme e Mar, teatro (4 ª ed. Remodelada 1977)
– Contos da Montanha (7 ª ed. Revista de 1987. Edição brasileira, espanhola e inglesa)
– Diário I (7 ª ed. 1989)

1942
– Rua (4 ª ed. Revista de 1967)

1943
– Diário II: O Senhor Ventura (4 ª ed. Revista de 1977)
– Lamentação (Poesia)

1944
– Libertação (Poesia)
– Novos Contos da Montanha

1945
– Vindima

1946
– Diário III
– Odes (Poesia)

1947
– Sinfonia (Teatro)

1948
– Nihil sibi (Poesia)

1949
– O Paraíso (Teatro)
– Diário IV

1950
– Cântico do homem (Poesia)
– Portugal

1951
– Diário V: Pedras Lavradas

1952
– Alguns poemas ibéricos (Poesia)

1953
– Diário VI

1954
– Penas do purgatório (Poesia)

1955
– Traço de União (Teatro)

1956
– Diário VII

1958
– Orfeu rebelde (Poesia)

1959
– Diário VIII

1962
– Câmara ardente (Poesia)

1964
– Diário IX

1965
– Poemas ibéricos (Poesia)

1968
– Diário X

1973
– Diário XI

1974
– O Quinto Dia da Criação do Mundo

1976
– Fogo Preso

1981
– O Sexto Dia da Criação do Mundo
– Antologia poética (Poesia)

1982
– Fábula de Fábulas


Traduções

Os livros de Miguel Torga estão traduzidos para diversas línguas, a exemplo de: espanhol, francês, inglês, alemão, chinês, japonês, croata, romeno, norueguês, sueco, holandês, búlgaro.