O Conto como Metáfora da Criação Artística


Miguel Torga é ainda hoje um desconhecido do grande público leitor brasileiro, tão distante do que se publica em Portugal. Embora a obra completa desse dissidente da geração de Presença já ultrapasse os cinqüenta volumes, apenas um foi publicado no Brasil: Contos da montanha, em 1955, reeditado em 1962.

Enquanto este livro permaneceu, para o autor, desterrado no além mar, Torga reuniu exemplos dos mais significativos de narrativas centradas no mistério das montanhas em um outro volume: Novos contos da montanha, obra das mais fecundas em meio ao melhor do conto de Miguel Torga e, conseqüentemente, das literaturas de língua portuguesa.

Mas o leitor brasileiro ainda ficará por muito tempo privado do fascinante contato com este e outros textos do autor do Diário.

Se as publicações das casas editoras mais bem distribuídas de Portugal são impedidas de entrar no Brasil pela política obscurantista posta em prática pelo nosso governo, que filtra a entrada de livros e idéias no país, pela cobrança altíssima do valor do dólar/livro, os textos de Torga ainda estão mais distantes do leitor: é o próprio poeta quem publica os seus livros — o que, por certo, também dificulta a livre circulação das obras tanto aqui quanto lá.

Mas isso não impede que se reconheça nele a condição de artífice de alguns dos melhores contos já es­critos em Portugal, desde a aparição deste ge­nero. Não poucos são pequenas obras primas, que realizam a mais densa dialética da criação literária.

Como exemplo vejamos "O caçador", que figura entre as narrativas de Novos contos da montanha. (1)

Trata-se da história de Tafona, o velho caçador. Com oitenta e cinco anos, a vida para ele era uma estranha, como se a não tivesse conhecido no jeito de viver da aldeia. Aprendendo a perscrutar a natureza e seus seres, desaprendeu o jogo dos homens e as convenções da cultura.

A trama da história é simples: o trajeto de um velho caçador que não mais pode se afastar da vila e da vida dos seus habitantes, pelo cansaço do corpo traído. Os sítios dos arredores e as arengas dos homens e mulheres são agora vizinhos do antigo descobridor de veredas desinventadas.

Assim é que ele não compreende os ciúmes da aldeia a interditar o desejo de Matilde e Avelino, nascido no mato como o instinto das aves ou dos mamíferos, segundo a ordem da natureza.

Todo conto, sabemos, é um recorte da realidade, uma seleção de aspectos que, sendo particulares, abrem as portas tio geral, valendo como símbolos de alguma coisa bem maior.

Sob este aspecto, o conto é uma anti-narrativa, porque seu verdadeiro sentido, sua essência, é inenarrável. Ou ainda, é uma metanarrativa. O que está além da narrativa.

Um conto que se esgota nos limites da história que conta, não é um conto, mas um episódio desgarrado de uma ficção mais ampla, que não se realizou na escrita, não se escreveu, nem nunca se escreverá. Porque todo texto de criação, não importam suas dimensões, é um mundo em si, microcosmo, com suas leis, seus seres, sua própria organização. Se a obra não destrói um mundo para construir um outro mundo sobre os destroços cotidianos que refaz a realidade estabelecida nos sem-limites do espaço de transgressão —, ela não é uma obra de arte. É um exercício formal, ou um discurso conceitual, ou outra coisa qualquer. Por isso, ela subverte a organização do universo, sublinha sua crise; como caminho para superá-la.

Um conto não vale pelo que conta. Mas pelo que não conta. Pelo que se projeta no silêncio da narrativa e fica. E precisamente aquilo que se instala, e habita para sempre a sensibilidade e a inteligência do leitor, que é a essência do conto. E essa essência nunca é dita, porque não cabe nos limites de umas poucas folhas de papel, embora, paradoxalmente, caiba nos signos poéticos contidos nessas folhas.

Se no romance , pouco a pouco , o autor constrói a essência do texto , no conto ela germina no leitor: rompe, brusca, como uma semente num óvulo fértil, depois do encontro. Se o romance lento, longo, se tece pela eloqüência do verbo ou pelo desenrolar gradual da trama, a teia do conto, ágil, se projeta na eloqüência do silêncio. O silêncio de depois do ato desentranha o sentido desse ato/leitura. (2)

Assim é que vejo "O caçador", de Miguel Torga, como um texto que opera simultaneamente com uma linguagem objeto conotativa e com uma metalinguagem. Trata-se, portanto, segundo a teoria de Hjelmslev, de uma semiótica cujo plano da expressão e cujo plano do conteúdo são também semióticas. (3) Em outra palavras: duas direções de leitura são evidentes no conto de Torga. Numa leitura primeira é a condição humana e os limites do vive da aldeia que constroem a história de um velho caçador. Num outra, conotativa (no sentido hjelmsleviano), o caçador é o artista o criador, o poeta — e os caminhos da caça são a sintaxe da composição. Ao mesmo tempo que Torga reflete sobre a condição do homem, este bicho que habita a floresta dos símbolos de que nos fala Baudelaire, (4) a reflexão se funde com uma teoria da arte.

Senão, acompanhemos os passos do caçador plurívoco, camaleão poético, dando a palavra a Miguel Torga para que, sublinhando à margem da narrativa este segundo sentido polar que o texto constrói, cheguemos à verificação da hipótese proposta no título: o conto como metáfora da criação artística.



NAS PEGADAS DO CAÇADOR

"Casara, tivera filhos, mas nada disso o tocara por dentro virgem e selvagem na alma, continuava a caçar" (pág. 53). Sabemos que a literatura em particular, e a arte em geral, é um meio de ver o mundo com olhos limpos e sem as lentes da língua, na tintura do seu registro denotativo . Com outras lentes, achadas por entre as plagas que se olha.

O estranhamento, segundo os formalistas de Praga, o olhar inaugural, segundo a crítica moderna, ou o signo selvagem e outras expressões são modos diversos de dizer a arte como forma de conhecimento que nos apresenta o mundo sob ângulos ainda não captados, descobrindo, às vezes, o essencial ocultado. Por isso, a condição de virgem e selvagem na alma define o caçador palavras.

O mundo e a vivência sempre se reinventam e renovam ato da criação poética, onde é virgem a lousa em que se inscreve a experiência. E como se o espírito da arte estivesse ainda intocado pelos fatos e contornos habituais do mundo, à espera do inusitado. Como o selvagem primeiro, o artista não está contaminado, na vertigem da criação, pelos vícios e vias da cultura, permanecendo aberto ao alumbramento do mundo que se inaugura no signo alquímico do invento.

"A pobre Catarina, a princípio, ainda tentou encontrar naquele destino pontos de referência em que pudesse firmar-se. Mas as respostas vinham tão vagas, tão distantes" — continua Torga a sua narrativa. — "Não era que ele mesmo enredasse os caminhos e despistasse conscientemente a companheira. As peripécias da caça e a cegueira com que galgava os montes é que o impediam à noite de relatar o trajeto seguido. Se quisesse e soubesse dizer por que trilhos passara, falaria de veredas e carreiros que nunca conhecera, descobertos na ocasião pelo instinto dos pés, e rasgados no meio de uma natureza cósmica, verde como uma alucinação, com alguns ramos vistos em pormenor". (pág. 54). O drama de Catarina, que numa já caracterizada "primeira leitura" representa o de tantos parceiros em busca de conhecer os insondáveis caminhos da alma do outro, pode aqui, na outra leitura polar, ser tomado em relação à perplexidade do leitor menos apto a "encontrar pontos de referência em que pudesse firmar-se" para o entendimento do mundo inaugurado pela obra. A dificuldade de Catarina, ao tentar encontrar sentido na direção das pegadas do caçador, figura a tentativa de alguns leitores ou fruidores de uma obra de arte no sentido de acompanhar a construção do mundo contida nessa obra. Em ambos os casos estamos diante da necessidade de migração de um sistema lógico estabelecido para outro que se insinua, sedutor, porém desconcertante, como todo sedutor. (5)

Ao transformar a realidade natural numa nova realidade simbólica, às vezes conflitante com a instaurada pela língua social, o artista enfrenta o risco das suas representações soarem vagas e distantes. Como se vê no conto analisado, não é que ele mesmo enrede os caminhos e despiste conscientemente os companheiros de viagem no mundo dos signos estéticos. As peripécias da busca, da caça ao difuso —sentido amorfo, como diz Saussure (6) — é que impedem o relato preciso do trajeto seguido.

Quando o artista consegue captar novas predicações de forma e novas relações com os objetos, a linguagem comprometida com a formação e as relações convencionais se torna insuficiente para comunicar a descoberta. Às vezes, mesmo, nem a consciência sabe dos caminhos. O mundo antevisto pelo olhar profético da arte no espaço de transgressão é captado por antenas que antecedem ao saber. Assim é que o inconsciente chega primeiro ao difuso universo semiótico das novas relações simbólicas. O artista, nos ensina Torga, se soubesse dizer por que trilhas seguiu, falaria de veredas desconhecidas, descobertas na ocasião pelo instinto dos pés, rasgadas no meio de uma natureza cósmica. Por isso, é verde como uma alucinação, ou nova, à espera de decantação, a imprevista descoberta que constitui o mistério natural da arte.

Este outro enfoque do real, projetado pelo signo estético, também é uma forma parcial de ver o mundo. Assim como cada cultura humana seleciona os aspectos e objetos convenientes aos seus intentos e necessidades, construindo a realidade social, humana, como uma espécie de metonímia, de ângulo ou ponto de vista da realidade natural, a arte também apreende um dos aspectos condenados à sombra, com alguns ramos vistos em pormenor.

É evidente que a função da arte é explorar os aspectos condenados à sombra. Se ela repete de forma graciosa, como quer certa estética que se propõe "ciência do belo", as mesmas articulações estabelecidas, ela é apenas uma harmoniosa coleção de clichês mas nunca obra de arte. A transgressão seria o ponto central da questão. Que o artista pretenda seduzir o fruidor com este tipo de concessão é legítimo, como é legítima toda sedução. Mas se seu trabalho se esvai nesta sedução, estamos diante de uma tema de patologia da arte — conforme se pode ver com desenvoltura no romantismo.

É cego o vôo do artista para além das fronteiras do espaço de convenção que constitui a cultura, mas, como todo vôo, é necessário e gratificante quando apreende no outro espaço os contornos de uma realidade mais satisfatória ao homem.

Como o universo natural na sua totalidade é inacessível à compreensão humana, cada forma de conhecimento projeta suas luzes sob um aspecto particular. A língua, a lógica da cultura, com suas finalidades imediatas, com sua praxis, evidentemente desvia o foco dos aspectos não convenientes às teias em que é tecida. Daí a utilidade da arte enquanto delírio não utilitário: compensar o excesso de lógica e pragmatismo do conhecimento comprometido, permitindo captar outras nuances do natural, ocultadas (mais uma vez esta palavra se impõe) pela disciplina do objetivo perseguido.

Por tudo isso, o caçador "As vezes até se admirava, ao regressar a casa, de tanta bruma e tanta luz lhe terem enchido simultaneamente os olhos" (pág. 54).

Mas, observa Torga: "É claro que nem sempre as horas eram assim. Algumas havia de perfeita consciência, em que nenhum pormenor da paisagem lhe escapava, as próprias pedras referenciadas , aqui de granito , ali de xisto. Mas mesmo nessas ocasiões qualquer coisa o fazia sonâmbulo do ambiente. Era tanta a beleza da solidão contemplada, despegava-se das serranias tanta calma e tanta vida, os horizontes pediam-lhe uma concentração tão forte dos sentidos e uma dispersão tão abso­luta deles, que os olho; como que lhe abandonavam o corpo e se perdiam na imensidão" (pág. 54-55). Aí a dialética da arte , fundindo a razão ao inconsciente, a intencionalidade ao acaso, conforme a expressão do poeta Carlos Pena Filho: "Vertigem lúcida"; título de um dos seus poemas.

O mergulho inconsciente que permite aos argonautas de Ulisses uma perene odisséia no espaço de transgressão, (7) às vezes se abre num relâmpago claro às razões da consciência. A intencionalidade da arte permite a dialética entre razão e delírio, produzindo no texto momentos de clara consciência, quando o criador opera com os valores da cultura e toma como referência a realidade social do seu momento histórico.

De modo análogo ao artista que procura se manter inarredável do trajeto do seu ofício, o caçador de Torga se constitui enquanto ser que habita a palavra: "A caça fora a maneira de se encontrar com as forças elementares do mundo. E nenhuma razão conseguira pelos anos fora desviá-lo desse caminho" (pág. 55).

As limitações impostas pelos anos ao velho caçador da história exemplar de Miguel Torga se assemelham aos momentos de pobreza criativa ou ao fim da imaginação criadora, quando o artista perseguido pelo fantasma do eunuco se debate com a impotência de vôos inventivos, tentando reunir aqui e ali restos de festa e articulações fecundas. "Mas ele lutava, e, embora limitado às cercanias da aldeia, continuava ainda a sonhar. Contudo, sem a liberdade absoluta dos longes, o seu espírito já não podia voar como dantes, A povoação ficava-lhe demasiado perto para lhe ser possível um alheamento como o de outrora. E os olhos, cansados e traídos, começaram a mostrar-lhe o mundo triste dos outros. Contra vontade, observava, então. Mas em casa, à noite, a mulher punha o acontecido a uma luz tão desconforme com o que ele vira, tão alheia à sua compreensão, que fechava a boca e não respondia" (pág. 57).

Cada frase do trecho acima poderia ser sublinhada como uma unidade de sentido, nos remetendo a reflexões sobre o fenômeno estético e fechando a discussão com a diversidade de ângulos que faz de cada obra uma forma de abandonar os limites da convenção para ampliar o espaço da cultura com o acréscimo de novas relações e modos de ver articulados no discurso da arte.

O modo de formar que caracteriza o signo poético é uma transgressão dos modos aceitos pelas instituições da cultura. O texto por conseguinte, capta o mundo a uma luz desconforme, alheia à compreensão comum. "De maneira que se metia mais consigo com medo do vidro de aumento que deformava tudo e envenenava os sentimentos. Porque uma coisa sabia ele: é que quase um século de caça não lhe endurecera nem lhe empeçonhara a alma. Matara, sim, e matava ainda, se podia, mas não era com ódio, a gritar maldição, que o tiro partia. Mais amorosamente do que mortalmente, o dedo premia o gatilho. E quando, a seguir, a lebre esperneava ou a codorniz gemia, a sua mão aligeirava docemente aquela agonia, numa carícia aveludada. Entre o sangue da perdiz morta — que através do cotim da calça, morno, lhe acordava a consciência da pele — e o seu próprio sangue, não havia o muro de nenhuma desarmonia. A morte que a arma fazia tinha no mesmo instante uma ressurreição dentro dele" (pág. 58).

A riqueza simbólica do texto remete à idéia segundo a qual a criação artística exige a destruição do mundo caduco, de que fala o poeta, para erguer sobre seus escombros os planaltos do invento. Mas, por outro lado, a arte não prescinde dos materiais e descobertas que antecedem o seu fazer: é celebrado um processo de harmonia e rompimento que só a consciência da pele pode engendrar. O trânsito de um espaço a outro.

Ao mesmo tempo em que a arte se inscreve no espaço de transgressão, com relação à cultura da qual nasceu, ela também pode ser vista como integrante do espaço de convenção contra o qual se instaura. Sendo uma instituição da cultura, legitimada pelas convenções das quais se faz transgressora, a arte é, na verdade, um elo simultâneo: de ruptura e agregação (Thanatos e Eros), destinado a contribuir com a dinâmica do espírito humano.

Ao irromper — rumo ao espaço de transgressão, onde Eros brinca, e reina — a arte não pode se afastar da base que lhe sustenta e a qual tenta modificar, sob pena de se desmoronar enquanto tal. Tendo diante de si a tarefa de captar e enformar a nova realidade, ela possibilita o trânsito entre a descoberta e as convenções da cultura. Ao estreitar a distância que separa a rotina cotidiana do relâmpago do invento, a arte cumpre o seu papel de agente dilatador do espaço de convenção, incorporando a ele o que antes era transgressão difusa.

O personagem central do conto analisado, ao tempo em que é ele próprio um transgressor do mundo da aldeia, personifica, enquanto metáfora, a transgressão . O caçador abandona os contornos da moralidade tradicionalmente defendida, indo buscar na natureza em estado puro — não contaminado pelos genes da cultura — o sentido maior do desejo. Compelida pelas convenções ancestrais a interditar os jogos de Eros, a aldeia concebe imoral a imantação entre Matilde e Avelino, para os quais cada clareira do mato era um Éden de macieiras frondosas. Cada habitante do ciúme se julgava um Anjo do Senhor destinado a impedir o pecado original ou a descoberta da árvore da ciência. Travassos, como lhe pedia o cotovelo, era o mais zeloso guardião dos donzéis, sempre ocupado em perseguir os amantes e manter toda a gente informada.

Já Tafona, o caçador, de seivas contrárias se nutria. Umbilicalmente ligado à natureza era incapaz de entender "o tecido de razões com que era feito o mundo que o cercava, a malha que menos o prendera era aquela onde se debatiam forças e gestos de amor. O cio, a brisa de sêmen que agitava todos os seres vivos durante alguns dias em cada ano, sabia-lhe à frescura de uma onda sagrada" (pág. 59). Por isso o caçador silenciava. Batia-lhe estranho o modo com que a aldeia tecia sua lógica: se via compreensiva a corrida cega das rezes e fêmeas do pasto, a pulsação do sangue de uma mulher tocada pelas setas do Arqueiro lhe parecia crime.

Assim, mais se fazia fundo o fosso vazio de palavras entre o velho e o mundo da aldeia. O silêncio e a distância crescia afastando as paralelas da compreensão e esboçando a conformação de duas realidades polares que Tafona habitava. O conto termina com o episódio da incansável perseguição do jovem Travassos ao desejo dos amantes, na mira do caçador. Como a idade lhe obrigasse a não mais explorar as veredas desconhecidas, Tafona quedava escondido por entre as moitas da redondeza, a espreitar qualquer bicho pequeno, qualquer caça vadia.

— "Os passos eram da Matilde, sorrateira, a saltar um barranco e a sumir-se na vinha.

—É boa!... murmurou outra vez intimamente, agora noutro tom. Mas ainda o seu espanto não acabara, já o Avelino, do lado do monte, lépido, deslizava para o meio da ramagem.

Riu-se. Desta vez riu-se com a sua mansidão habitual, sem barulho, enternecidamente, como se estivesse nos velhos tempos e visse no azul do céu dois pintassilgos a voar para o mesmo ninho.

Infelizmente, os namorados a desaparecerem, e sobre eles de nariz no rasto, numa perseguição de rafeiro, o Travassos que por acaso, caminhava direito à arma do caçador.

O Tafona nem teve tempo de pensar. Parou a respiração e encolheu-se quanto pôde atrás do esconderijo.

O abelhudo vinha apressado e chegou a tiro.

— Alto lá! — ordenou-lhe então, sereno, mostrando o corpo.

O Travassos estancou apalermado. Por fim viu quem era e falou-lhe:

— Sou eu, ó ti Zé!

— Bem sei. Mas não te mexas.

— O Travassos, ti Tafona. Deixe-me ir salvar a infeliz! A tremer e de olhos esgazelados, o zeloso coscuvilheiro não conseguia perceber. Mas Tafona tinha-lhe friamente a espingarda endireitada ao peito, e ninguém da aldeia confiava na alma solitária do caçador.

— Alto, e nem tugir nem mugir! Aquelas coisas querem-se na paz do Senhor..." (p. 62-3).


JUNTANDO OS ESTILHAÇOS

Para concluir, não é preciso traduzir em linguagem denotativa esta longa transcrição do final do conto. Basta, apenas, juntar o chumbo miúdo espalhado pela arma do caçador na mira do alvo incerto.

A natureza sempre foi o ponto de partida dos artistas, tendo alguns momentos históricos se caracterizado pela contemplação elevada à condição de modelo. Mesmo as atitudes de isolamento — quando o artista abandona a realidade urbana, construtora da realidade social e humana, para se refugiar na natureza pitoresca — presentificam uma busca de consciência, ou, pelo menos, conduzem a ela. Se os parâmetros e valores da cultura desembocam no non-sense, os homens precisam descobrir novos pontos cardeais.

Na fuga romântica à natureza estaria também presente o direcionamento para a transgressão, a possibilidade de descoberta de novas relações destinadas a modificar a realidade do conhecimento. É precisamente por isso que um Göethe, para citar apenas um exemplo máximo, irrecusável, conseguiu impor a sua arte como momento significativo do vôo do espírito prisioneiro.

Por outro lado, é do aprovei­ta­mento do mergulho na natureza empreendido pelos românticos que os realistas construíram os mais sólidos alicerces do movimento — ou que alguns românticos ergueram a consistência do seu invento.

Assim, a literatura moderna, mesmo quando plantada em meio às flores e verduras verbais do romantismo, não pode ser acusada como faz uma certa crítica desesperadamente "atual", de saudosista ou anacrônica. É preciso ir além dos significantes, porque muito autores que convidam o leitor a caminhos aparentemente fáceis conseguem ultrapassar o puro deslumbramento diante da natureza exuberante e empreender a viagem insondável.

Por fim, repito, leio o conto de Torga como metáfora da criação artística — onde cada teia da trama figura um elo estrutural da composição — porque, entre outros caminhos, a trilha do caçador é ela mesma um processo de transgressão. Se o personagem se constitui enquanto gauche, anjo torto do poeta, sua sedutora solidão nos convida a compartilhar este espaço desabitado, elegendo-o varanda ou mirante do nosso espaço cotidiano. Com ele descobrimos que, além dos nossos olhos, ainda há o que mirar.

Bandeirante ou desbravador — as trilhas do caçador conduzem à clareira cósmica em meio à enredada floresta do trajeto humano.

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NOTAS

1. Torga, Miguel: Novos contos da montanha. 7ª. ed., Coimbra, (1977).

2. Estas relações entre o conto e outras formas foram colocadas anteriormente num artigo que publicamos no Minas Gerais Suplemento Literário, intitulado "Sobre o conto e o poema", em 1980, tendo inclusive provocado uma série de depoimentos sobre o conto naquele mesmo suplemento, quando voltamos a discutir a questão, respondendo às perguntas formuladas pelos editores.

3. Cf. Hjelmslev, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Trad. J. C. Neto. São Paulo, Perspectiva, 1975.

4. Lembramos o poema "Correspondências", onde Charles Baudelaire diz que
"La Nature est un temple où des vivants pilliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L 'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui I'observent avec des regards familiers".

5. O problema da sedução e da criação artística chamou nossa atenção num trabalho apresentado ao Encontro de Literatura Portuguesa, realizado em 1982 na Universidade Federal de Pernambuco, O desatino e a lucidez da criação. Fernando Pessoa e a neurose como fonte poética. Aí se partia da afirmativa do próprio Pessoa de que a histeria é a base do gênio lírico. Sublinhada a permanente tentativa de sedução por parte do poeta, tanto nos textos de criação quanto nos teóricos, lembramos que a sedução tem se mostrado, através da prática analítica, uma constante nos quadros de histeria. O histérico seduz o interlocutor para que este entre no seu jogo. E o artista? A questão, no entanto, precisa ser aprofundada.

6. Segundo Saussure, antes da língua emprestar a sua forma, constituindo o significado, o que existe é uma zona amorfa, onde o difuso paira. "Filósofos e lingüistas sempre concordaram em reconhecer que, sem o recurso dos signos, seríamos incapazes de distinguir duas idéias de modo claro e constante. Tomado cm si, o pensamento é como uma nebulosa onde nada está necessariamente delimitado. Não existem idéias preestabelecidas, e nada é distinto antes do a aparecimento da língua". Ferdinand de Saussure: Curso de lingüística geral. São Paulo, Cultrix, 1972. p. 130.

7. A propósito, os poetas antigos comparavam a composição de uma obra com uma viagem de navio. “Compor é fazer-se de vela”. Ver especialmente o item "Metaforismo" em Ernest Robert Curtius: Literatura européia e idade média latina. 2ª ed. Brasília, INL, 1979.